Datilografando uma história: a sobrevida das máquinas de escrever


A companhia Godrej & Boyce, a última fábrica de máquinas de escrever do mundo, teve o fechar de suas portas em 2011, em Mumbai, na Índia [1]. O fim de uma era? Apesar de esse fechamento ser um marco, eras não acabam da noite para o dia. Além de entusiastas, é possível que em muitos lugares do mundo as máquinas de escrever ainda tenham algum uso profissional. Como comparação, basta pensar no transtorno causado pelo fim do suporte aos pagers no Japão [2], tecnologia já defasada que ainda encontrava no país do Sol nascente um número expressivo de usuários.
 
O processo de substituição de tecnologias é quase sempre uma transição: há dez anos, encontrava facilmente fitas para minha Olivetti em praticamente qualquer papelaria. Mais recentemente, pouco antes da pandemia, procurei por uma em vários estabelecimentos da Região Central e só encontrei em um local; atualmente compro pela Internet, visto que no Mercado Livre há várias opções. Mas a questão é: até quando? Difícil saber, pois tecnologias nascem e morrem num processo gradual, sobretudo quando seu uso foi largamente difundido.
 
Minha história com as máquinas de escrever não é muito longa. Nalgum momento remoto da infância havia interagido com uma que meu padrinho mandaria ao lixo, tendo ficado muito curiosa sobre o funcionamento de seus mecanismos. No entanto, minha real relação com esses equipamentos começou com a Olivetti Dora de minha tia. Conforme a etiqueta colada por ela na máquina, a compra foi feita aos 08 de outubro de 1980, para seu 25° aniversário. Com o sonho de ser compositora, ela escrevera suas várias poesias através do teclado dessa Olivetti.

Num dado momento de 2008, aos meus 10 anos de idade, ela me deu essa máquina de escrever. Era algo divertido e novo para mim que até então mal tivera contato com computadores. Inclusive, nos primeiros anos de minha infância, sempre que via a máquina de escrever num canto do quarto de minha tia pensava se tratar de um computador.

Àquela altura, fui à papelaria a comprar uma fita e por um tempo acabei usando a máquina, inclusive, para alguns trabalhos de escola. Por fim, a Olivetti acabou ficando por anos encostada: eu sempre tentava voltar a usá-la, mas me irritava com alguns problemas que o tempo lhe causou e a acabava abandonando novamente.

Foi aí que, na primeira onda da pandemia da Covid-19, resolvi me esforçar para consertá-la e, de algum modo, restaurá-la. Não foi fácil, pois meu conhecimento em mecânica é zero, de modo que fiz tudo a partir de muita tentativa e erro. Infelizmente, havia mais erro que tentativa, o que acabava ocasionando novos problemas. Isso, num dado momento, me deixou desesperada e prestes a procurar uma das poucas oficinas que restam em São Paulo, na Rua Libero Badaró. 

Dada a escassez do serviço de manutenção hoje em dia, imaginava que uma restauração não fosse ficar muito barata. Eis que a força da mão-de-vaca me fez conseguir consertar todos os problemas da minha Olivetti Dora mesmo sem conhecimento algum em mecânica. Deste modo, a memória afetiva se somou ao valor da labuta e do desespero, o que faz com que meu apego pela relíquia seja hoje ainda mais profundo que costumava ser durante os anos em que esteve comigo.
 
 
Desde esse então, tenho aproveitado seu perfeito funcionamento para voltar a escrever regularmente. Isso tem me ajudado muito em vários sentidos: escrever numa máquina parece ser, de algum modo, mais sinestésico, como se vivêssemos o texto. Não poder voltar atrás torna minha escrita muito mais concisa e direta, sem o vai-e-vem entre um trecho e outro que ocorre nos computadores. Às vezes, estou seguindo uma linha de raciocínio e uma única palavra trocada faz com que eu precise repensar tudo o que diria a seguir para manter a lógica, contornando tudo com outras palavras que não pensara anteriormente. Claro que, ao errar, há a opção de riscar e seguir a vida, mas quando o erro é muito extenso só nos resta a opção de recomeçar tudo do zero — e aí está uma baita pressão para que não erremos. 

A maior diferença para mim é, sem dúvidas, a concentração. A máquina de escrever não oferece todas as distrações de um computador conectado à Internet. Assim, um rascunho datilografado acaba gerando uma primeira versão de um texto bem mais fluída que seria se feita no Word ou no LibreOffice.

Assim, colocar a máquina de escrever no lugar da escrivaninha onde costumo deixar meu notebook pode acabar sendo a salvação de um texto que se encontrava travado. Depois, enquanto redigito-o ao mundo eletrônico, acabo percebendo problemas de lógica, gramática ou concisão e posso repensar toda a forma do texto. É curioso que, tão habituada ao uso do notebook, nalguns momentos estou escrevendo na máquina e, assim que saio para ir fazer alguma outra coisa, acaba me vindo o pensamento de que sua bateria deve estar acabando e que eu deveria conectá-la à tomada — mas é claro que não há bateria ou eletricidade alguma, minha máquina é mecânica!
 

É claro que minha vida não depende de uma texto datilografado, pois, como dito, quase sempre vou passá-los ao meio digital, aproveitando todas as benesses e facilidades de correção e formatação que o século XXI nos oferecem. Não depender exclusivamente da escrita mecânica faz com que a experiência seja bem mais agradável do que poderia ser, afinal, datilografar em 2021 não é o mesmo que fazê-lo em 1981. Há uma série de inconvenientes mecânicos que não são um problema hoje, mas pensar enfrentá-los durante várias horas todos os dias é um pesadelo; ter que ficar trocando folhas seguidamente ou virando os carreteis de fita pode até ser gostoso e nostálgico em 2021, mas acredito que muita gente em 1981 xingasse uma coletânea de palavrões ao ter que fazer isso. Ou talvez fosse isso tudo algo tão corriqueiro que nem se notasse? Não sei, é uma questão a perguntar a alguém mais velho que tenha trabalhado diariamente com máquinas de escrever. Quiçá, no futuro, quando possamos digitar e nos conectar só com o pensamento, achemos todo o conjunto de teclados e touchscreens de nossa atual época uma quinquilharia igualmente inconveniente.
 
Uma comparação possível é com a fotografia analógica, já pedindo as minhas desculpas aos colegas amantes do filme. Mas, do mesmo modo em que há muitos entusiastas desse tipo de fotografia ainda hoje, muitos fotógrafos de longa carreira não sentem nenhuma saudade dos inconvenientes do período. Sebastião Salgado, por exemplo, comenta sobre os danos causados aos seus filmes pelas sucessivas passagens dos raios-x nos aeroportos, fator agravado após o enrijecimento dos protocolos de segurança num mundo posterior ao 11 de setembro. Foi então que, segundo seu relato, ao saber que a fotografia digital já tinha uma qualidade superior à analógica, decidiu-se por fazer a transição. O relato pode ser visto neste vídeo a partir dos 18:00 minutos.

Isso não quer dizer que, tanto no caso das máquinas de escrever mecânicas em comparação aos computadores, como no caso das câmeras, o analógico não tenha vantagens sobre o digital. Num geral tecnologias não são substituídas por serem ruins, do contrário não teriam permanecido no mercado por tantos anos e não engajariam tantos entusiastas mesmo após seu abandono pela indústria. As substituições fazem parte de um conjunto de fatores muito mais amplo que a dicotomia entre o bom e o ruim, podendo incluir a praticidade, o custo ou mesmo a simples preferência dos consumidores (às vezes não é nada disso, não fazendo sentido algum). Essas substituições ocorreram durante toda a história da humanidade e hão de continuar ocorrendo, basta pensar na substituição de blocos de pedra ou placas de argila por tecnologias como o papiro, o pergaminho e o papel na Idade Antiga, ou mesmo a substituição dos monges copistas pela prensa móvel, na Idade Média. É de se imaginar que nenhuma dessas tecnologias tenham morrido da noite para o dia, passando por vários períodos de transição e, eventualmente, sendo usadas até hoje em contextos específicos.


Talvez as máquinas de escrever estejam numa fase crítica e terminal, chegando um dia sua morte final, onde só restarão exemplares em museus. Mas enquanto este dia não chega, datilografemos, não dedilografemos "catando milho", porque o mercado é doido, e quem sabe um dia alguém não resolve voltar a fabricá-las, como temos visto ocorrer ao vinil [3] [4] [5]?

Daniely Silva, 10 de abril de 2021.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Pelas veias do Cone Sul: no último dia, senti saudade

Maria Clara Fagundes: Uma Felizarda? - Resenha de Pedaços da Fome (1963), Carolina Maria de Jesus

Letra de imprensa x Letra cursiva