Letra de imprensa x Letra cursiva


Minha primeira relação com algo próximo à letra cursiva remete à tenra infância. Não sei se a maioria passou por isso, mas hoje vejo como engraçado o costume de escrever "em cobrinhas" pensando que fossem palavras reais. Também nessa altura, chamava a letra de imprensa "letra de computador", referindo-me principalmente às fontes serifadas que à letra de mão comumente feita no papel.

No Ensino Fundamental, tivemos que aprender a escrever em cursiva. Se volto ao processo de alfabetização,  por mais que tenha se iniciado na 1ª série, na minha memória o real domínio sobre o sistema de escrita se deu na minha 2ª série (equivalente ao atual 3º ano). Graças aos intermináveis e repetitivos beabás, percebo que ainda carrego, até hoje, boa parte da caligrafia da professora Sizalta.

E assim, com a letra cursiva, permaneci por anos até o final do Ensino Médio, quando decidi utilizar a letra de imprensa a fim de uma melhor estética e legibilidade. Nesse meio tempo, meu professor de português era o que sempre implicava com a mistura feita entre as letras cursiva e de imprensa. Por mais inconveniente que fosse sua importunação, hoje percebo o quanto essa prática é comum e realmente acho, se não feio, ao menos esteticamente desarmônico. De todo modo, com o tempo, acabei deixando de misturar os dois tipos.

Neste 2021 pandêmico, recomecei o caminho inverso, exercitando voltar à letra cursiva. No meu diário, encontro no 22 de maio a primeira página em letra manuscrita — mas é de se imaginar que o processo tenha começado em outros papeis alguns dias ou semanas antes. Após meia década usando a letra de forma, dei-me conta que já praticamente não sabia como escrever em letra de mão.

Para fazer uma assinatura, era um trabalho descomunal; para escrever rápido, depender da letra de imprensa era uma dificuldade sem tamanho. Por mais que a letra de forma denote a delicadeza da razão e de uma estética comedida, eu sentia falta das qualidades da letra cursiva, que traz a fluidez de pensamentos que se libertam na ponta de um lápis que, levemente, flui sem querer se afastar do papel arranhado. É uma escrita que, leve ou agitada, perde-se na velocidade do fluxo das ideias, com a beleza singela da fluidez.

De quebra, ainda ganho a possibilidade de usar pontualmente a letra de imprensa para dar o destaque a uma palavra importante ou que está num outro idioma.

Desafios eventualmente aparecem. O mais atual é o de buscar um modo bonito de escrever a letra S maiúscula cursiva; conectá-lo ou não à letra seguinte? Como tanta coisa na vida, a prática e os questionamentos levam à perfeição e os experimentos nos mostram novas possibilidades.


Outro desafio é o jeito esquisito com que seguro a caneta. Com a pressão sobre o calo no dedo médio e a unha do anelar machucando a palma da mão, preencher um gabarito após uma longa prova se torna uma labuta.

Talvez a isso se deva certa a dificuldade que tenho em seguir as pautas de uma folha, tendo que fazer um esforço enorme para não escrever torto em linhas retas. Esse problema foi maior na infância, mas ainda hoje tenho que tomar o cuidado para que isso não aconteça. Isso é até um obstáculo para ter um caderno sem pauta, algo que sempre quis mas tive o receio por estar habituada às linhas me guiando. Mas vale o risco, não é mesmo? Que a experiência me sirva para aprimorar a retidão.
 
Enquanto isso, independente se através da escrita mecânica ou digital, da manuscrita de forma ou de mão, o que vale é seguir escrevendo. A escrita pode não ser a única forma de registro possível, mas é, por enquanto, uma das poucas capaz de materializar o pensamento.

 
Daniely Silva, 30 de dezembro de 2021.

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