Navegando pelos sonhos de uma São Paulo navegável

  
O nascimento e maturação do que hoje vem a ser a cidade de São Paulo se deu entre rios. Durante séculos, sua relação com os corpos d’água foi de cumplicidade. Já no século XVI, a vila de São Paulo de Piratininga foi fundada num local em que os habitantes Tupi já haviam escolhido como ideal para habitação: a colina histórica entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú.  No entanto, com o advento do automobilismo e a ideia de uma nova cidade para o século XX, os rios paulistanos perderam seu lugar central, tornando-se quintais dos fundos da cidade. 
 
Rios que antes eram caminhos, deram lugar a caminhos de concreto às suas margens ou sobre eles. Bairros inteiros foram construídos sobre as várzeas de nossos rios. É claro que isso teria um preço...
  
No momento em que comecei a escrever o rascunho desta publicação, aos 10 de fevereiro de 2020, São Paulo passava pela sua maior enchente generalizada desde 1995. Houve bloqueio das avenidas marginais e da Linha 9 Esmeralda da CPTM, a qual também margeia o Rio Pinheiros.


Por séculos os rios foram as grandes vias de comunicação entre São Paulo e outras regiões: o Tamanduateí levava à atual região do ABC Paulista, o Pinheiros a Santo Amaro e o Tietê, a partir de Salto de Itú, ao interior e a boa parte do país através de seu encontro com o Rio Paraná. Mesmo que os rios não fossem plenamente aproveitados em seu potencial de navegabilidade, suas margens tinham grande proveito como ambiente relativamente plano e como pontos de referência.
 
Já no ano de 1956, o geógrafo Aziz Nacib Ab'Saber percebia a importância dos cursos fluviais na urbanização da cidade de São Paulo. Em Geomorfologia do Sítio Urbano de São Paulo, o autor mostrava como a cidade surgiu e cresceu ao longo das colinas e terraços fluviais, evitando avançar em direção às inundáveis e insalubres várzeas. Tais regiões, como mencionado, mostravam-se adequadas, graças ao seu relevo plano, para as estradas e ferrovias, como vemos em trechos da Estrada de Ferro Sorocabana e seu ramal Jurubatuba e, posteriormente, nas avenidas marginais.
 
Deveras, as áreas de várzeas foram historicamente tratadas como quintal dos fundos da cidade, não sendo nunca executado um projeto de uso sustentável. Mas propostas não faltaram: a mais conhecida é do engenheiro-sanitário Francisco Saturnino de Brito, famoso pelos canais de Santos. Ele propusera uma larga faixa de parques lineares ao longo do Tietê, com a presença de lagoas de contenção nas proximidades da foz do Tamanduateí e o envio do esgoto urbano para trechos do rio a jusante da cidade de São Paulo. Seu projeto não foi aprovado e em seu lugar foi escolhido o plano de avenidas de Prestes Maia, que incluía a construção das avenidas marginais junto aos nossos principais rios.

Havia, portanto, uma tentativa intencional de urbanizar as áreas inundáveis dos rios paulistanos. Bairros inteiros foram construídos sobre essas regiões, como a Mooca, o Pari, o Brás e a Lapa — daí bairros como o Alto da Mooca e o Alto da Lapa que marcam através do nome sua diferença topográfica com relação aos vizinhos.
 
Não é coincidência que esses bairros estejam entre aqueles que mais sofrem de enchentes na cidade: eles estão situados sobre leitos estendidos dos rios, o que faz com que as enchentes e inundações sejam algo totalmente esperado nessas porções da cidade. Medidas de contenção das águas são, portanto, somente paliativas. A única solução definitiva seria repensar a ocupação da cidade ao longo de suas várzeas, mas é claro que isso seria impraticável na atual condição de moradia da cidade, onde os cidadãos se espremem em meio a encostas, córregos e brejos nas periferias da cidade.
 
Ainda que a metrópole já não se expanda a taxas vistas décadas atrás, há uma escassez de moradia que ocasiona elevados preços do metro quadrado, o que faz a ideia de mover bairros inteiros a outras regiões um plano mais do que ousado — e, deveras, inconcebível.
 
A população paulistana está então fadada a conviver com a fúria das águas? Medidas como a permeabilização do solo, melhor aproveitamento das águas pluviais e da área construída, assim como a abertura de megapiscinões subterrâneos podem mitigar fortemente os potenciais danos das enchentes e inundações, mas dificilmente poderão eliminá-los totalmente.
 
É curioso pensar que, geralmente, temos a impressão de que os rios invadem as ruas do espaço urbano. Mas não seria o contrário? Acaso não seria a humanidade quem invadiu o espaço fluvial? Isso pode ser uma discussão conceitualmente delicada: o ser humano é um animal geográfico e, assim como ele vive e habita um espaço, ele também o produz.
 
Pensando a partir das ideias do professor Milton Santos, não há na Terra espaço natural no atual período técnico-científico-informacional, tendo em vista que cada quilômetro quadrado do Planeta se tornou alvo de interesses científicos e econômicos. Assim sendo, não há como dizer que o rio invade as ruas quando cheio, pois ele está apenas ocupando seu espaço natural de inundação; do mesmo modo, não há como dizer que o ser humano invadiu o espaço dos rios, tendo em vista que não há fronteira definida entre o espaço natural e o produzido, de modo que a humanidade se constitui como um animal que faz seu uso do espaço como outro qualquer. O que deve ser discutido é qual a intervenção no espaço urbano mais adequada à dinâmica urbana, aos habitantes humanos e à biota local.
 
A condição atual é de rios que, outrora protagonistas, tornaram-se obstáculos a serem ignorados e escondidos entre paredes ou coberturas cinzentas de concreto. Ainda, a situação que vemos no Rio Tamanduateí, com suas paredes verticais que o sufocam entre a Avenida do Estado, quase foi replicada no Rio Tietê: a proposta de freeway de Paulo Maluf (PP), quando de sua candidatura à Prefeitura Municipal em 2008, propunha o avanço de lajes em direção ao rio para alargamento da avenida marginal em seus dois sentidos. Assim, o Tietê, que já não tem aparência aprazível, teria decretada a morte de possibilidade de convívio com a população a curto e médio prazo.

Felizmente, o maior dinossauro da política paulista não voltou à cadeira de prefeito. Contudo, uma grande oportunidade foi perdida na execução da Nova Marginal Tietê, nas gestões do governador José Serra (PSDB) e do prefeito Gilberto Kassab (PFL/DEM/PSD). Anunciada em 2009 com um investimento previsto de R$1,3 bilhão por parte do poder público e de concessionárias de rodovias conectadas à Marginal do Tietê [1], a obra tinha uma inquestionável importância para o fluxo de veículos não só na cidade de São Paulo, mas em toda a Macrometrópole — sobretudo numa época em que menos trechos do Rodoanel estavam concluídos. Apesar de sua relevância, a obra carregava um viés carrocêntrico, não à toa a marginal já se encontra novamente saturada por veículos; não foi cogitada a extensão de transporte em massa sobre trilhos, tal qual há às margens do Rio Pinheiros, entre outras opções de escala mais humana. 

Ainda assim, a Nova Marginal teve um importante trabalho paisagístico com o plantio de árvores que hoje já se apresentam cada vez mais frondosas, além da já mencionada importância para o tráfego rodoviário.
 
O caso do rio Tamanduateí, contudo, não é desprezível. Ainda que o rio em si seja inacessível devido às suas paredes verticais, ele está muito mais acessível à população que o Tietê devido às diferenças entre as avenidas que os margeiam. Ainda que a Avenida do Estado tenha alto fluxo e calçadas estreitas, a existência de semáforos e cruzamentos torna sua escala muito mais humana. Além disso, apesar de boa parte das áreas por onde passa serem consideravelmente degradadas, ainda há atrativos culturais e comerciais que tornam a população mais próxima ao Rio Tamanduateí: às suas margens estão o Museu Catavento, o Mercado Municipal, a Feira da Madrugada, a Zona Cerealista e o Sesc Parque Dom Pedro II, no lugar onde anteriormente estiveram os lendários edifícios São Vito e Mercúrio. É importante ressaltar, no entanto, que aqui me refiro a seu trecho na região central, já que seus outros trechos têm uma série de outras particularidades, passando pelo tamponamento do rio e pela existência do Expresso Tiradentes.
 
Nessa região da cidade, o projeto de revitalização do Parque Dom Pedro II propunha um importante diálogo com a água e as dinâmicas fluvial e pluvial da região, incluindo uma lagoa em meio ao parque reformulado. O projeto, cotado em R$1,5 bilhão em 2012 [2], tinha o fator financeiro como um grande empecilho para sua execução; assim, o que temos do projeto em 2021 é somente o Sesc de contêineres que será substituído pelo prédio proposto na altura do lançamento do projeto de revitalização do Parque Dom Pedro II.


Entre os três principais rios de São Paulo, aquele que se apresenta mais integrado ao espaço urbano é o Rio Pinheiros: além de uma orla ajardinada pelo Projeto Pomar, sua margem direita é acompanhada por uma ciclovia que tem seu acesso a partir das inúmeras estações de metrô da CPTM, com sua Linha 9–Esmeralda. Com os avanços do Programa Novo Rio Pinheiros, para despoluição da sub-bacia do rio, e do projeto de parque linear que visa integrar suas margens, a intermodalidade e o convívio entre o rio e a população só tendem a aumentar.
 
O passo final de tal intermodalidade pode ser a navegabilidade. Apesar de a ideia estar incluída nos escopos de trabalho do Novo Rio Pinheiros, há anos já se falava da importância da exploração do transporte fluvial na Grande São Paulo. O maior expoente desses trabalhos é o professor Alexandre Delijaicov, da FAU-USP.

O que o professor Delijaicov propõe é a construção do Hidroanel Metropolitano, de modo que os rios Tietê e Pinheiros, junto às represas Billings e Taiaçupeba formem uma estrutura viária anelar na metrópole. Um importante apontamento do professor é que São Paulo pulou etapas na sua interligação por aneis viários: graças às políticas rodoviaristas, optou-se primeiro pela construção de um rodoanel — ainda incompleto neste início de 2021 — em detrimento de um anel hidroviário e um ferroviário, sendo este último particularmente importante para a melhoria nas operações dos trens metropolitanos da CPTM, visto que possibilitaria o fim ou a drástica redução da circulação de trens de carga nos trilhos urbanos.
 
Conforme a proposta do professor da FAU-USP, boa parte da estrutura para tal empreitada já está pronta, sendo necessária "apenas" a construção de mais algumas eclusas e um canal de ligação de 18 quilômetros entre as represas Billings e Taiaçupeba [3]. Hoje, o Tietê, por exemplo, já é navegável entre a Penha e Santana de Parnaíba, possibilitando o transporte de sedimentos e resíduos de dragagem e de estações de tratamento [4]. Esse potencial já parcialmente aproveitado no nosso Rio Tietê poderia ser estendido à metrópole com a existência do hidroanel, permitindo a gradual expansão a outros usos hidroviários.

Há que se reconhecer, no entanto, que as possibilidades de ligação entre o Hidroanel Metropolitano e a Hidrovia Tietê-Paraná são extremamente limitadas — para não dizer inviáveis. Isso por que há um importante trecho de corredeiras entre Santana de Parnaíba e Salto de Itu, fator que foi, inclusive, limitante para as bandeiras, fazendo com que partissem por via fluvial somente a partir de Itu. Assim, é provável que não vejamos um megaporto na cidade de São Paulo nos moldes de Manaus, Nova York ou Shanghai, tendo em vista as limitações de sua rede fluvial em se conectar a outras importantes redes hidroviárias.

Ainda com essas limitações, um melhor aproveitamento hidroviário traria uma série de benefícios ao convívio urbano [5]. Um deles é a redução na circulação de caminhões, mesmo que as cargas transportadas por via fluvial não sejam as mais nobres num primeiro momento. O maior mérito, contudo, manifesta-se sobre a autoestima da população. Ainda que rios limpos e navegáveis oferecessem tão somente opções de lazer, a diferença no modelo de cidade e de convivência já seria enorme: os rios que perderam seu protagonismo para se tornarem quintal dos fundos voltariam a ter seu espaço central no cotidiano da população paulistana. Uma cidade que fora famosa pela alcunha de Terra da Garoa e deu o lugar de sua fama ao pé d'água seguido de enchentes agora poderia ser reconhecida pelo cuidado e a pela atenção atribuída aos seus rios e à sua dinâmica natural; pois, se não há fronteira rígida entre os espaços natural e humanizado, podemos fazer nosso espaço aprazível para todas as formas de vida locais: um rio bem cuidado para o humano e pelo humano é também um rico espaço de biodiversidade, possibilitando uma cidade mais saudável a todos.

Foi curioso que enquanto escrevia esta publicação a partir de um antigo rascunho fiquei preocupada se teria suficientes fotos de rios para ilustrá-la. Enquanto vasculhava meus arquivos, acabei ficando surpresa ao dar-me conta de que subestimei uma série de fotos de rios feitas por mim. Redescobrir é um processo sempre interessante, pois nos dá ideias para o novo. Entre projetos futuros, tenho uma série de ideias para seqüências fotográficas sobre o nosso Rio Tietê; algumas destas ideias resolvi compilar através da ferramenta My Maps, as quais podem ser vistas clicando aqui.

Daniely Silva, 07 de abril de 2021.

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