Pelas veias do Cone Sul: no último dia, senti saudade


            Numa rápida e corrida viagem pelo Cone Sul, quase me perdi conhecendo quase todas as suas capitais. Se ainda me faltam a Pacífica Santiago do Chile e la Asunción de Paraguay, não me faltam lembranças de Floripa, Buenos Aires, Montevideo, Porto Alegre e Curitiba, com direito às capitais departamental e provincial Colonia del Sacramento e Córdoba.

            Deixei o Terminal Rodoviário Tietê numa noite de 2 de maio, com mochila tão pesada quanto a carga de trabalho de um ano de espera pelas férias.

 

 

            O tempo era levemente frio, não havendo grande choques de temperatura no decorrer da maior parte da viagem. Não foi diferente na Ilha do Desterro. O Sol tímido entre nuvens e ares frescos me sopravam a vista que tinha das montanhas, aquelas que se sobressaíam das nuvens, mostrando um relevo bordado pela Ponte Pênsil; não era Rio de Janeiro, mas era maravilhosa. Apesar de tudo, não me sentia bem; perguntava-me se esse mal estar era resultado da ansiedade. Sabia que não era fome, então sobrava pensar que era culpa do café amargo.

            Logo, ou, não tão logo, já no terceiro dia de viagem, percebi a origem daquele mal estar: estava ficando resfriada. ¡Carajos! Ao ultrapassar os limites da Cidade Autônoma de Buenos Aires, de imediato, já me atacava a amigdalite. Que sorte!

 


 

            Sendo uma autêntica andarilha do inferno, não foi o que me impediu de bater perna de um lado ao outro — sempre, é claro, com máscara de proteção facial. Nisso, me deparei com a capital e maior cidade de um país em crise, mas que esbanja pujança e não mostra a crise para as visitas que chegam a sua sala de estar. Percebi, também, um trânsito caótico e a falta de preferência para o pedestre, contrastando com a extrema cordialidade do portenho que não se refletia ali. Como resultado, qualquer travessia numa conversão, com ou sem semáforo de pedestres, era tão perigosa quanto tentar atravessar a Marginal do Rio Pinheiros às 5 da tarde — já fiz ambas as coisas e ainda estou aqui para contar história.

Seguia com os sintomas que não me permitiram desfrutar do que a noite anterior oferecia: por ocasião do aniversário dos donos do hostel, havia cerveja de graça a noite toda. E nem era a Brahma ou a Antártica com as quais estou habituada: era Jack Daniel’s pra cima. A febre que me consumia não me impediu de tomar um copo generoso, três vezes o volume de um dos nossos queridos copos americanos; não me lembro de já ter tomado uma cerveja tão boa. Mas, exausta dos três dias na estrada, desmaiei de sono. Ao menos, na tarde daquele dia, saíra com minha tão sonhada jaqueta autêntica argentina, numa promoção especial em que a última peça naquele tamanho me serviu perfeitamente (ao menos um pouco de sorte).


 

 

No quarto dia de viagem, o 6 de maio, era hora do primeiro café-da-manhã na capital argentina. Deparei-me com a surpresa de que as famosas media lunas  são vazias, ocas como a autêntica croissant francesa (a qual também pensava ser recheada até pouco tempo atrás). Nessas andanças, percebi forte presença de livrarias e papelarias. Dizem que o argentino lê muito, talvez ele também anote muito e escreva resenhas sobre o que leu. No Centro, sobretudo, ainda há massiva presença de serviços de fotocópia, o que supus se dever à existência de muitas repartições, como também à precária digitalização dos serviços públicos. Essas repartições estão cercadas por praças que, como toda praça, estão tomadas de pombas. E que pombas gordas! Acho que esqueceram de avisar a essas cidadãs aladas sobre a inflação de 110%. Talvez, quando bater 600%, elas finalmente emagreçam.

            Algo positivo foi perceber que os portenhos jamais tolerariam algo como o Minhocão ou a Radial Leste nas entranhas de sua digníssima cidade. É claro que há vias expressas, como em toda megacidade, mas elas estão ao redor, não dentro. Além disso, essas vias são elevadas e não representam pontos de degradação urbana.  O tráfego é intenso, mas o portenho parece conviver com isso: não vai ser construída uma passarela onde é necessária uma faixa de pedestres; isso me fez me perder em devaneios pensando num Eixo Monumental de Brasília convidativo aos pedestres, idem a avenidas como a 9 de Julho e a 23 de Maio em São Paulo, as quais também são coroadas por um obelisco tão charmoso como o portenho, mas rodeado por máquinas automotoras assassinas. Na eterna discussão se a avenida mais larga do mundo é a Nueve de Julio ou o Eixo Monumental, a portenha ganha da candanga na vitalidade urbana e nas atrações.

            Diferente do Brasil, ao que me pareceu, viadutos não garantem uma eleição. Como dito, convive-se com o engarrafamento e a vida segue sem invadir o espaço do pedestre. Na semana seguinte, ainda faria essa observação no tocante às ferrovias: há uma maior tolerância aos cruzamentos em nível: se há dinheiro, são feitos túneis, senão, não se toleram viadutos e prevalece o cruzamento via férrea em nível.

 

 

Passados a sexta e o sábado de frio, garoa e sintomas respiratórios, chegava o quinto dia de viagem, um domingo de 7 de maio, quando embarcava a Córdoba Capital, na primeira viagem de trem da minha vida. Retiro LSM a Córdoba, saliendo a las 11 y media de mañana.

            O grande desafio foi encontrar o local de embarque: havendo três estações de nome Retiro, as andanças pra lá e pra cá foram boas para perceber que meu castelhano, nesse quarto dia de Argentina, já fluía mais naturalmente. Descobri que o embarque não era em nenhuma das três suntuosas estações, mas num velho galpão na rua lateral. Recomendaram-me que não fosse para lá tão cedo, porque a rua poderia ser perigosa — mas, na realidade, não era tão diferente da Rua Mauá e da Estação da Luz. Não dava pra dizer que não estivesse habituada, a diferença estava nas brisas mais frias e no idioma sem as vogais nasais.

            Liberada a entrada para a estação improvisada, vi que o local mais parecia uma garagem que um terminal. Mas, pelo menos, os trens eram novos e limpos. Depois, quando estava de volta à CABA, soube que toda essa confusão nos terminais de embarque se devia a uma intensa modernização nas ferrovias. Um caos necessário?

            Os empregados ferroviários eram todo muito corteses e, quando viram que o alto-falante não funcionava, passaram os informativos de viagem no gogó. Foi o único momento em que se ouvia com clareza um portenho: quando gritando, porque, com essa exceção, percebi que falam muito baixo. Ou, talvez, a amigdalite tenha prejudicado minha audição e o problema não estivesse neles; essa dúvida só vou tirar na minha próxima ida às terras do Prata.

            Algo curioso foi ver que os empregados usam o mesmo banheiro que os clientes e passageiros, o que já havia notado no Mercado de San Telmo, em restaurantes e no hotel em que ficara em Buenos Aires. Talvez, a cultura de separação seja menos intensa lá do que por aqui, no Brasil.

            A viagem era longa, só chegaria a Córdoba às 10 da manhã do dia seguinte. Sem Wi-Fi, estava totalmente dedicada às paisagens planas da porção da América do Sul em que o continente se estreita, o chamado Cone Sul. Pude até terminar a leitura de Ensaio Sobre a Cegueira, livro brutal do português Saramago. Que globalizada! Uma brasileira, numa ferrovia argentina que talvez foi construída por ingleses, num vagão possivelmente chinês e lendo um livro da Europa continental.

Ao longo da viagem, descobriria que levara a melhor quando o comissário intermediou uma troca de assento para que uma família se sentasse próxima: o assento que comprara tinha uma coluna bem no meio da janela, enquanto aquele em que efetivamente me sentei tinha vista desimpedida para uma janela inteira; é, às vezes as trocas valem a pena.

            Acabei me perdendo nos pensamentos que eram incendiados pela paisagem. Mas é que, pra ser sincera, as paisagens dessa porção da Argentina eram bem menos interessantes que as percorridas no Brasil. Eu bem tinha sido alertada por um brasileiro residente em terras portenhas:

— Lá em Córdoba, vão te falar muito dos vilarejos e das cidades na serra. A Argentina é muito plana, então com qualquer serrinha todo mundo já fica entusiasmado, mas não chega aos pés do Sul de Minas.

— Plana? Mas e os Andes?

— Ah, lá é outro rolé! Mas, fora isso, você vai olhar e vai dizer: ah, [parece o] Sul de Minas.

O que esse brasileiro que conheci num encontro de Esperanto me disse me pôs numa reflexão que carrego até hoje. No país dos nossos hermanos, as principais cidades estão numa imensa planície, sem grandes acidentes de relevo em boa parte de sua extensão. Isso vale para Buenos Aires, Rosário, Córdoba e Santa Fé. No Brasil, por outro lado, a maioria da população se concentra na faixa litorânea, onde há o relevo atlântico dos Mares de Morros. Recife, Salvador, Vitória, BH, Rio, São Paulo, Curitiba e Floripa: todas essas e mais algumas estão incrustradas ou cercadas pela geomorfologia ancestral das serras do Mar, da Mantiqueira e da Borborema; cidades essas que enfrentaram um relevo que não facilitou em nada a construção de ferrovias, gasodutos e rodovias — tudo isso se tornou um desafio dantesco para a nossa engenharia. Um dos melhores exemplos disso é São Paulo e Santos: a maior metrópole do Hemisfério Sul e o principal porto da América Latina estão separadas por umas poucas dezenas de quilômetros, a mesma distância que por séculos impunha uma desafiadora viagem de dias, até o momento em que as cremalheiras inglesas conseguiram dobrar a Serra para a passagem dos trens e, no século seguinte, o Sistema Anchieta-Imigrantes permitiu a transposição rodoviária entre pontos tão próximos e tão distantes.

Tudo isso para dizer o quê? Que fomos infaustos nos desafios impostos pelo relevo, mas que temos paisagens estonteantes! Naquela viagem de trem, fiquei me lembrando do caminho de São Paulo até Floripa e desta até Buenos Aires através de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul: a paisagem não me deixava dormir e competia com a envolvente leitura de Saramago. As lagunas catarinenses recobertas por suas serras ousadas, os Aparatos da Serra no Rio Grande do Sul anunciando a vinda do Rio Grande e da Campanha Gaúcha, tudo recoberto pela soberba da nossa resiliente floresta ombrófila densa e salpicado pela luxúria mesozoica das Matas de Araucárias. Era de tirar o fôlego.

Ainda na Campanha Gaúcha, o pampa rio-grandense tinha um quê de brasilidade. Mas, havendo cruzado a fronteira, havia apenas uns amontoados de eucaliptos para romper a sem-fim monotonia da planitude dos Pampas. Estou sendo injusta, certo. O Pampa argentino não difere tanto do brasileiro, nem do uruguaio, até porque, formam uma continuidade paisagística. Mas falar da brasilidade é tão clichê quanto especial. Sei que temos mania de diminuir nosso país e nossas cidades, mas trago uma surpresa: o portenho é igualzinho! Não importa o elogio que você faça à República Argentina ou a Buenos Aires: ele sempre terá uma (auto)crítica na ponta da língua para rebater. Talvez seja esse um mal sofrido por toda nossa grande pátria latino-americana.

Mas, para fechar o assunto dos Pampas e do relevo brasileiro, desenhado por Deus enquanto namorava na beira do mar do amor, só mais uma coisinha, aí voltarei ao ferro-trajeto a Córdoba. Pouco antes de viajar, lera Domínios da Natureza do Brasil, do geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber, achei que seria bom para minhas tantas horas de contemplação da paisagem nessa longa viagem pela América do Sul. No capítulo em que destrincha sobre a Campanha Gaúcha, Aziz menciona o episódio em que questionou um boiadeiro sobre a finalidade de uns amontoados de eucaliptos em meio às extensas pradarias; o homem, em tom jocoso, prontamente esclareceu que serviam para proteger o gado do Sol quente no Verão e do vento gelado do Inverno, o que pôs Aziz em reflexão, pensando que, em nosso país, o gado estava mais protegido que os miseráveis das nossas favelas e das nossas precárias roças.

Só que no caminho para Córdoba não havia nada disso. Na minha memória só ficou pasto, pasto, pasto, um pouco de rizicultura e mais pasto. Volta e meia, alguma cidade quebrava um pouco da monotonia. Tinha grande curiosidade com Rosario, la ciudad del Messi, onde me surpreendi ao encontrar uma cidade com favelas talvez mais precárias que as brasileiras. Vez ou outra, os niños e as nenas acenavam para o trem que passava, costume fofo e curioso que me remetia ao sertão pernambucano; mas houve um menino mais espevitado que resolveu atirar uma pedra ao trem. Esse me espantou, mas não me lembro em qual cidade foi — talvez em Rosario, a mais populosa do trecho.

Foi em Rosario Norte onde o trem fazia a parada mais longa, onde podíamos descer e esticar as pernas. Foi bem na hora do ocaso, um dourado lindíssimo que reluzia no capim seco pré-invernal. Não podíamos sair da estação, mas os ambulantes prontamente se posicionavam nos gradis para vender seus lanches e suas guloseimas. Comprei um lanche de pollo e salame delicioso, que pelo menos não vinha com os avisos intimidadores do Ministério da Saúde sobre o excesso de gordura, de sal e de açúcar. Soube que em breve também teremos esses adesivos no Brasil, mas não é como se o argentino se importasse muito com eles. É como os rótulos nos cigarros: intimidam quem quer começar a fumar, mas depois se tornam só parte da paisagem. Afinal, não é como se fosse fácil encontrar comida saudável em Buenos Aires: comem muito empanado, muita fritura e a salada não é acessível; em toda a viagem, não vi sequer um grão de feijão[1]>Minha esperança era que em Córdoba se comesse melhor.

Rumando a Córdoba depois de fecharem as portas do trem em Rosario, a noite foi bem desconfortável, pois o banco era duro e não reclinava, apesar de espaçoso. Meu veredito sobre viajar de trem é que é muito confortável durante o dia, porque se pode caminhar, ir ao coche comedor tomar algo e os banheiros são espaçosos. Importante lembrar que, não havendo Wi-Fi na estação em Buenos Aires e nem no trem, também não havia em Rosario Norte, portanto, cheguei a Córdoba incomunicável, com uma forte sensação de solidão. Havia batido papo com uns passageiros, mas nada muito profundo. Um idoso falava, mas muito enrolado e eu não entendia, até o ponto em que ele percebeu e me perguntou: ¿Entendiste lo que te dije? Ninguém gosta de ser incompreendido, isso é igual em qualquer país.

Nessas conversas curtas, também percebi que tenho lambdacismo ao falar em línguas estrangeiras, seja o castelhano, o Esperanto ou o inglês; se um dia aprender francês, vou descobrir se o sintoma é insistente. Mas tudo bem, a vibrante alveolar é mesmo um fonema complicado. Pelo menos, agora poderia pronunciar Córdoba várias vezes para praticar, porque chegava o sexto dia de viagem, uma segunda-feira de 8 de maio.

Chegando pela manhã, o primeiro a me chamar a atenção foi que as caixas d’água se assemelham a grandes túmulos, fazendo com que o subúrbio da cidade se assemelhasse a um enorme cemitério — talvez seja isso que queiram do subúrbio nos países periférico: um lugar onde se pode enterrar as massas trabalhadoras.

Passeando pelo centro da cidade, tive boa impressão das ruas de Córdoba, pareciam ser mais convidativas para caminhar; só que, apesar disso, como em Buenos Aires, os motoristas não davam passagem para pedestres sequer em conversões. Em todo caso, senti uma urbanidade mais orgânica, mais com cara de cidade de verdade do que uma vitrine. É claro que, nesse caso, a realidade se impõe: havia muitos vendedores ambulantes e, até mesmo as pombas, que ali estavam em maior quantidade que na capital do país, eram mais magra, como se em Córdoba tivessem lembrado de lhes avisar sobre a inflação.

Nesse dia, caminhando por La Cañada, famosa avenida marginal de uma estrutura de contenção das águas fluviais e pluviais do Rio Cañada, resolvi comprar um cacho de uvas em um mercado de bairro. Ali, houve um diálogo que fica no limiar entre o cômico e o insano.

Hola, ¿cuánto las uvas?

¿Qué?

Ay, ¿cómo se llama acá?

¡Güemes!

No, ¡las uvas!, disse um terceiro na conversa.

— Ah, [se llaman] uvas.

Após essa conversa sem sentido, caminhei pelo bairro do Güemes sob o Sol dourado de fim de tarde enquanto saboreava minhas uvas (que, afinal, também se chamam uvas por lá). O bairro , que diziam ser boêmio, mais parecia uma vila eclesiástica naquele dia. Em todo caso, após conhecer a Cripta Jesuítica, ver a fachada da igreja em que o Papa Francisco foi ordenado e caminhar por La Cañada, fui embora com a sensação desesperadora de já ter visto quase tudo o que a cidade oferece no primeiro dia, e que ficaria entediada nos próximos três dias, com o arrependimento de não ter programado mais dias em Buenos Aires. Restava dormir com esse pensamento e com o cansaço dos 15 quilômetros caminhados naquele dia.

 
 

 

Amanhecia o sétimo dia de viagem, uma terça-feira de 9 de maio. Nas caminhadas matinais, logo já refletia novamente sobre a situação do pedestre em Córdoba, quando percebi que quase não há semáforos peatonais na cidade. É, pelo visto não são calçadas largas que resolvem totalmente nossa vida, principalmente quando, como dito, os carros não dão a preferência ao pedestre e levando em conta que, na maioria das esquinas, sequer há semáforos para os automóveis.

Ao falar que Córdoba é orgânica através de uma metonímia, também posso dizê-lo literalmente. Há, na cidade, muitos mercados de produtos naturais e um ativismo animal especialmente forte, o que inclui uma grande quantidade de vegetarianos e veganos. O fato de ser uma cidade universitária pode ter importante influência nisso, mas, mais tarde, um estudante local me falou sobre a polêmica do jardim zoológico, que se encontra lacrado devido a denúncias de maus tratos e às más condições das instalações. Ele também falou sobre a contradição dessa forte presença do veganismo, tendo em vista o fato de que Córdoba é um dos locais onde mais se consome carne na Argentina. Isso não foi grande surpresa, porque, como em Buenos Aires, vi muitas comidas fritas e muitas milanesas — essa sim foi a surpresa, já que pensava que isso seria diferente em Córdoba, dado a interiorização e os supracitados mercados naturais. Portanto, não foi confirmada a esperança de encontrar comida saudável na cidade.

Outro tipo de comércio que se repetia muito na cidade era o das lojas de eletrônicos, mas nelas se notava a presença de muitos produtos defasados e de baixa qualidade, numa condição pior que no Brasil. Minha suposição é que isso se deve ao difícil acesso ao dólar e, portanto, aos importados. Novamente, o fantasma da inflação também ronda pelo interior do país, tanto no que se refere aos importados quanto aos gêneros básicos.  Porque, como em Buenos Aires, muitas lojas não têm rótulos de preços nos produtos, fazendo com que tenhamos que perguntar aos balconistas o preço de cada coisa — afinal, tudo pode mudar em questão de horas. Nos restaurantes também há um ícone onipresente: as lousas. Lá, o cardápio e os preços são escritos a giz e, ao fim do dia, lavou, tá novo e preparado para o preço do dia seguinte. Não bastaria uma etiqueta para os preços, porque a inflação pode influenciar até nos ingredientes, não só no prato final. A inflação é um tipo de crise seletiva, que escolhe corroer a renda dos mais pobres. Já tivemos uma hiperinflação para chamar de nossa, talvez por isso, no Brasil, ainda usemos lousas nos restaurantes; mas, hoje, isso se tornou uma escolha muito mais estilística que prática, relembrando aos mais atentos de tempos mais sombrios, de forma quase atávica.

Entre as caminhadas, deparei-me com flanelinhas oficiais, mas ainda não descobri qual o nome dessa profissão por lá. Também vi que Córdoba é uma cidade repleta de monumentos e, entre eles, há muitas referências a Cristóvão Colombo, as quais pareciam acríticas. Vi também algo inédito para mim, que eram as esmolas de banheiro. Havia um cofre, um funcionário e uma placa explicando que essas pessoas não tinham salário, de modo que se solicitava uma contribuição em dinheiro para seu sustento e para a compra dos insumos de limpeza. Havia visto algo parecido em Buenos Aires, mas na província de Córdoba essa cena era quase que onipresente nos banheiros públicos. Em todo caso, não era fácil encontrar um banheiro nem na Argentina e nem no Uruguai, e, em se tratando de bebedouros, não vi nenhum em toda a viagem, o que me fez naturalizar ainda mais o ato de beber água da torneira.

Ao fim daquela tarde na capital da província, finalmente visitei El Mirador, conhecido cartão-postal de Córdoba. É, talvez não tivesse visto tudo no primeiro dia, porque, às vezes, o melhor fica pra depois. El Mirador se trata de um escadão do Parque Sarmiento, principal parque da cidade e onde fica o Museu Provincial de Ciências Naturais. Para falar do escadão, voltamos à questão do relevo mencionada pelo brasileiro residente em Buenos Aires: algo super comum nas principais cidades brasileiras, mas especial em terras argentinas, onde são mais comuns os terrenos planos. Em todo caso, a vista era lindíssima: uma roda gigante à direita, a província arborizada ao fundo e, à frente, uns edifícios elegantes e uma ladeira diante do escadão. Subi a um lugar alto e fiz uns croquis, mergulhando na paisagem. Um rapaz me chamou, preocupado. Era o rapaz que me falara sobre o zoológico e as contradições de uma cidade vegana que é tão carnívora. Ele me compartilhou um mate e conversamos sobre filosofia e liberdade. Não era residente de Córdoba capital, mas estudante de arte que vinha da província. Morador do subúrbio, era periférico como eu, filho de migrantes como eu. Foram poucas horas de conversa, mas a interação mais interessante que tive nessa viagem. Identifiquei-me com as contradições, num momento em que me sentia só.

Também lhe devo uma por não ter me deixado morrer de tédio em Córdoba Capital, porque me indicou três cidades da província para visitar: Carlos Paz, Tanti e Jesumaría.

 


 

 

O dia seguinte raiava, uma quarta-feira de 1º de maio, o oitavo dia de viagem. Fui à rodoviária e procurei o ônibus para a única das cidades indicadas pelo rapaz do mate a qual eu visitaria: Carlos Paz. A surpresa foi não ter gostado. Outras pessoas fizeram belas propagandas da vila, mas só encontrei um lago eutrofizado, tudo muito caro e pouco original num ambiente artificial e feito para turistas. Que não me levem a mal os cidadãos de Carlos Paz, mas era um Sul de Minas piorado, se me é permitido desvirtuar o que me disse o brasileiro. Ao menos comprei um sorvete delicioso para aliviar o Sol quente na moringa e ganhei um alfajor delicioso de uma loja de fábrica para degustação (mas, para a decepção da vendedora, meus dólares e meus reais não ficaram lá em troca de uma caixa que, cá entre nós, estava a bom preço. Deixei para comprar no outro dia e acabei nunca voltando).

 


  

O nono dia de viagem, a quinta-feira de 11 de maio, veio para compensar a decepção do dia anterior. Agora, era a hora de visitar Alta Gracia, no meu último dia na província de Córdoba. Essa sim, era uma vila charmosa e original, cercada por serras de relevos ousados, nas quais a tectônica deve ser se inspirado nos desenhos que fizera na faixa litorânea brasileira. Ali, estava marcada a intensa presença jesuítica na província, já que o principal postal da vila se trata de El Tajamar, o primeiro dique de Córdoba, construído pelos jesuítas em 1659. Coroando as águas, estavam o moinho e as instalações eclesiásticas da Companhia de Jesus. Percebi que os argentinos valorizam muito a água na paisagem, integrando-se a incondicionalmente a ela. Os uruguaios, como vi mais tarde, levam isso ainda mais a sério, de modo que suas cidades se prostram diante do Prata.

Diferentemente de Carlos Paz, Alta Gracia não estava voltada inteiramente para os turistas; pelo contrário, já que o claustro jesuítico estava aberto somente para escolas, abrindo para o público espontâneo somente no Verão. Tudo bem, pelo menos é uma cidade mais orgânica e a comida era boa.

Dessas instalações jesuítas, ao menos pude adentrar a paróquia. Lá, tive uma experiência curiosa a qual me remeteu a um de meus contos. No conto em questão, inspirado num sonho, Nossa Senhora Aparecida se recusa a atender a uma reza em inglês, em empatia aos hispanoparlantes deportados e enclausurados nos campos americanos. Na igrejinha em Alta Gracia, uma turista americana começou a imitar meus gestos católicos diante do altar: quando me curvei, quando fiz o sinal da cruz e as venerações. É provável que ela fosse de orientação protestante e só quisesse se aclimatar ao ambiente tão católico que é o argentino, mas, justamente por isso, achei a cena curiosa.

 


Por falar nisso, algo que me despertou a atenção foi ter visto o primeiro templo protestante em toda a viagem ali, em Alta Gracia. Tratava-se de uma igreja protestante tradicional, talvez luterana ou calvinista, não me lembro ao certo; havia, também, um templo adventista e um mórmon, o qual também vi depois em outros pontos da Argentina. O mais importante é que, na viagem inteira, não vi sequer uma igreja neopentecostal. Isso diz muito sobre a demografia de nossos países. O Brasil pode até ser o país com maior número absoluto de católicos no planeta, mas, hoje em dia, aonde quer que se vá, haverá uma presença evangélica, em qualquer rincão do Brasil. Chuto que mais de três quintos da população argentina seja católica, fazendo jus ao primeiro Papa não europeu em séculos.

Algumas das últimas observações que fiz não eram lá grande novidade. Curiosamente, não vi nenhum motel nem lá e nem em toda a viagem, mas isso só me despertou a atenção em Alta Gracia. Havia muita poluição na província e o ar era seco, além da alta amplitude térmica, como no dia em que peguei uma mínima de 9ºC e uma máxima de 33ºC — pior que em Ribeirão Preto. Banheiros públicos, como em todo o caminho percorrido, eram também uma raridade, não os tendo sequer o terminal rodoviário, assim como em Carlos Paz. A grande novidade foi ter me deparado com a primeira pessoa em toda a viagem que não me deu um boa tarde, no terminal de Alta Gracia. Em seguida dessas observações banais, segui de volta para meu último crepúsculo em Córdoba, la capital.

Despedir-me-ia de Córdoba lá no Mirador, a poucas quadras do terminal, distância que me permitiu, finalmente, desfrutar de um autêntico vinho argentino. Todos tão bons e tão baratos... até me perdia na hora de escolher. Comprei um, cujo nome não me lembro, mas que me trouxe um pequeno grande problema a ser resolvido: eu não tinha um saca-rolhas. Tentei abrir com a chave, mas em vão, pois quase estraguei a rolha. Eis que lá vou eu a alguns comércios, pedir algo cujo nome nem conhecia em castelhano. Que constrangimento! Mas, ao menos, ninguém foi cavalo, e, depois de dar com a cara na porta algumas vezes, um solícito rapaz charmoso pôde me ajudar.

¡Ah! ¡Un quita corchos!

O quita corchos do rapaz estava já cego, o que lhe deu um certo trabalhinho. Mas, ao final, deu certo e lhe agradeci imensamente. Deixei o quiosco com a garrafa aberta em direção ao Mirador, escondendo-a entre minha recém adquirida jaqueta de argentina para que no digan “¡qué brasilera borracha, eh!.

Bateu a solidão e fiquei meio borracha vendo o céu violeta que sangrava com os raios de Sol que já fugiam daquela atmosfera rude.

 

sentís soledad

tenés ganas de volar

hay que regressar

¡hasta luego!

 

no último dia

senti saudade

mas eu já me ia

então era tarde

 


 

Fui em modo automático até a rodoviária e tive o sono de uma borracha até chegar às terras portenhas, despertando diante do bairro Padre Mugica, a Villa 31. Sí, señorita, Buenos Aires pode não ter morros, mas também tem favelas — e como as tem; talvez até o bispo Bergoglio, nosso Papa Chico, tenha pregado ali algumas vezes, falando sobre justiça e igualdade.

Nesse último dia em Buenos Aires, que era meu décimo dia de viagem, uma sexta-feira de 12 de maio, fui à famosa Feira do Livro, mas nada me apeteceu comprar. Fui também a Tigre, cidade de subúrbio cheia de rios e canais, com cara de Veneza ou Manaus e passeios de barco que partem para todo o Mar del Plata; fui, dei uma volta e voltei: lá, nada comi, nem embarquei. No retorno pelos trens de subúrbio, observei o que comentei alguns parágrafos atrás sobre a preferência pelas passagens de nível quando não há dinheiro para túneis, já que viadutos não são tolerados, pois, apesar de baratos e populares entre malufistas e filhotes da ditadura, enfeiam a cidade. Os trens de subúrbio eram limpos e modernos, possuindo até os avisos sonoros que faltavam em muitos dos carros do metrô.

 

            

Vi, novamente, muitos ambulantes no metrô e nos trens suburbanos. No metrô, a faixa amarela de segurança deve ter o triplo da largura das brasileiras — prevenção em primeiro lugar, devem dizer os portenhos. Outra observação não tão relevante é que não vi ninguém “fumando pendrive” em toda a viagem, os polêmicos cigarros eletrônicos. Proibido lá, do mesmo jeito que é proibido aqui, mas por aqui eu vejo todo dia.

            Algo que me assustou nesse retorno a Buenos Aires foi a imensa quantidade de propaganda estatal sobre as Malvinas, reforçando o quão Argentinas elas são. Estava por todo canto: nos trens, nos ônibus, nos postes e até nos raros banheiros públicos. Tive medo de que estourasse uma guerra em meio à minha viagem, mas era só insegurança de um governo desesperado com as crises presentes e as vindouras.

            Amanhecia o décimo-primeiro dia de viagem, um sábado de 13 de maio. Meu barco para o Uruguai saía ao meio-dia. Pensava em gastar meus últimos pesos argentinos pela manhã, para trazer vinhos, queijos e alfajores. Nada disso, porque os comércios acordam tarde aos finais de semana. Terminei com meus 3520 pesos argentinos se tornando 91 pesos uruguaios; senti-me como um autêntica argentina: com o poder de compra drenado ao cruzar a fronteira. O que pagaria uns três almoços, daqueles bons, agora comprava uma empanada e nem sobrava para uma passagem de ônibus urbano. A desvalorização da moeda é impiedosa, isso pude sentir.

 

           

A vida segue, ainda assim. Já embarcada, deparei-me com um barco lotado, quente e com janelas tão sujas que mal se podia ver através. Os bancos eram apertados e intransitáveis sem que o vizinho se levantasse. Foi aí que resolvi explorar e descobri que havia outros andares, inclusive com espaços ao céu aberto. Olhando para o sentido contrário do caminho do bote, deparei-me com a “ilha de Manhattan”: fiquei abismada com a paisagem da silhueta urbana de Buenos Aires abraçada pelo Prata.

 


 

            Chegar a Colônia foi como estar numa cidade brasileira, embora reste pouco do que foi construído pelos portugueses. Tudo lá era muito caro, como os turistas merecem, pois quase não havia nativos à vista. Já tonta com a vista, acabei conhecendo dois locais que viveram, cresceram e estudaram em Colonia del Sacramento. É uma cidade como qualquer outra, afinal. Eles me ofereceram marijuana legalizada e me contaram sobre a cidade e sobre os vacilos dos turistas. Foi o melhor que já fumei em toda minha vida. Fiquei encantada vendo o pôr-do-Sol beijando o mar que não é mar, o tal rio que é quase mar. Minha visão proseava com o cérebro enquanto desenhava delicadas formas geométricas através daquelas nuvens cirrus e daquela maré, com sua caligrafia ancestral.

            Mas era hora de me despedir. Foi só uma passagem que deixou um gosto de quero-mais. No ônibus para Montevidéu, perdi minha caneta preta e ainda tive um susto quando vi a polícia na estrada e todo mundo começou a descer do ônibus; foi um susto em vão, porque era só uma parada prevista, onde, por coincidência, a força autoridade estava nas ruas.

 






 

            Ainda naquele dia, cheguei tarde da noite à capital do país, onde encontrei uma cidade bem menos maquiada que as argentinas, apesar de também elegante. Parecia bem brasileira. As ruas estavam desertas ao longo da minha caminhada até o hostel, não havia a boemia portenha. Tive medo. Tive medo, sobretudo, quando o hostel não atendia à campainha. Eu não tinha um chip de celular daquele país, não havia como telefonar ou me conectar à rede. Ficaria eu à deriva? Seria roubada, sequestrada? Dormiria na praça? Voltaria à rodoviária? Ai, meu Deus, já é quase meia-noite!

            Nada disso foi necessário, porque atenderam à campainha, o recepcionista só estava conversando na cozinha. Ainda tive tempo de ir a um bar com uns uruguaios, uma paraguaia e uma boliviana de Santa Cruz de la Sierra. Um guapo me explicou sobre os tipos de marijuana que se compram no país: a da farmácia e la crema, que é como um corre legalizado e mais forte que a vendida oficialmente. No caminho para o bar, fumamos la crema e depois experimentei a maior novidade do mercado: maconha estatal. Ela tem mais cara de saudável e dá menos barato, mas já é melhor do que a melhor do Brasil.

            O que não tem como saber é se o barato que me deu se devia a la crema ou a la estatal. Só sei que quase passei mal, até senti aquele zumbido no ouvido que preconiza um desmaio. Só que eu me recuso a passar mal num país estrangeiro: fiquei de cócoras lá no bar até a pressão sanguínea se reajustar. Depois, tive um controle do meu corpo o qual nunca tive antes — e como era intenso. Quero morar neste país! Preciso voltar pra cá!

            Nem me lembro a que horas voltamos ao hotel, só sei que tudo foi muito rápido e bom. Até os rolés no Uruguai são mais brasileiros. O país é caro, mas vale a pena voltar.

            



 

Sem saber a que horas voltei, amanheceu o décimo-segundo dia de viagem, um domingo de 14 de maio, o último dia em solo estrangeiro. Não foi um dia especial. As ruas estavam muito vazias, porque lá também era Dia das Mães — e eu tão longe da minha. A mochila parecia mais pesada, ou, o mais provável, eu é que estava mais cansada. Chegou um momento em que eu já parava a cada 50 metros caminhados para descansar. Foi um dia reflexivo, dada a dureza de cada passo. Sequer fiz muitas observações sutis, só não pude deixar de perceber que Montevidéu cheirava a água oxigenada, o que meu olfato também percebeu em Colônia. Por que será?

Também tive sede no país. Como na Argentina, não havia bebedouros, mas no Uruguai a água da torneira tinha o sabor adocicado da putrefação de um cadáver humano. Era difícil de beber, tanto como era difícil carregar a mochila que me puxava para o chão. Em Colônia, havia visto algumas placas sobre a greve da companhia de água — não sei se havia alguma relação ou o gosto se devia ao tratamento empregado. Mas acho que essa água era saudável, porque não passei mal — mais fácil seria passar mal por não bebê-la.

            Sedenta, despedia-me do Uruguai com uma caixa de alfajores para comer no ônibus rumo a Porto Alegre. O ônibus era da Empresa General Artigas, cujo lema é El Mejor Viaje de Tu Vida; e de fato o foi, com lanche, jantar, café-da-manhã e serviço de bordo, fazendo com que me sentisse num avião sem precisar enfrentar o medo de viajar em um.

 

 

            Amanhecia o décimo-terceiro dia de viagem, uma segunda-feira de 15 de maio, com o Sol alaranjado se espalhando sobre o Guaíba. Esse rio-lago indeciso desenha a cidade de forma a torná-la tão linda de perto e ao longe. Mas, deixando a rodoviária, encontrei um caminho horrível para o pedestre: vias expressas elevadas e marginais oprimindo calçadas quase inexistentes. Problemas crônicos de cidades brasileiras. São crônicos, mas existem remédios para tal!

            Foi em Porto Alegre que matei a saudade do boteco e do PF, que não é um policial federal, mas o nosso prato-feito, tão bem servido a um bom preço. Que saudade eu tava de um boteco! Talvez seja essa a verdadeira brasilidade. Ainda que vestindo trajes regionais, há algo comum nos botecos de todo o Brasil, seja nas Minas, em Pernambuco ou no Rio Grande do Sul: uma comunidade espalhada do Oiapoque ao Chuí. Logo pela manhã, fui rebatizada com o pingado em copo americano (mais brasileiro que Carmen Miranda), que foi acompanhado por uma empada de Porto Alegre melhor que as empanadas porteñas. Também achei o atendimento gaúcho primoroso e melhor que a média paulistana.

            O Centro Histórico não era um primor de zeladoria, mas já estava acima da média dos centros de boa parte das capitais brasileiras. É gostoso caminhar onde os palácios não dão as costas para as ruas, mas as recebe como parte de sua integridade. Só é curioso ver tantas referências aos Farrapos, quando foi a capital gaúcha quem recebeu do imperador o título de Mui Valerosa e Leal Cidade de Porto Alegre, justamente por massacrar os combatentes farroupilhas. Mais uma amostra de como identidades nacionais (e estaduais) são meras construções fabulosas. Mas uma cidade que não sabe se é banhada por um rio ou por um lago não precisa manter a coerência histórica o tempo todo.

            A Catedral de Porto Alegre é quem foi o principal ponto de descanso. O silêncio de uma catedral é tão profundo quanto a existência de uma singela paróquia. Sons de passos preenchem o ar, assim como os rangidos de bancos de madeira seculares: são gritantes, como se compusessem a sinfonia do silêncio. As igrejas costumam ser meus pontos de descanso e reflexão, recebendo de braços abertos esta apóstata ateia quando cansada de caminhar em suas viagens. A catedral a mim foi leal, sendo a última igreja adentrada nessa viagem.

 



 

 

            O décimo-quarto dia de viagem, aquela terça-feira de 16 de maio, não me deu muito tempo em Curitiba. Depois de me despedir do Guaíba em seu alaranjado ocaso, os engarrafamentos do amanhecer de Curitiba reduziram minhas previstas duas horas para meros 40 minutos na Capital das Araucárias. Esses minutos me deixaram a impressão de que os curitibanos são tímidos, mas simpáticos, além de terem me deixado uma chocolate de um garçom garante dos olhos brilhantes.

            A vida já cobrava voltar, porque, nesse dia, depois de enfrentar o engarrafamento curitibano pela manhã e o da Marginal Tietê pela tarde, ainda teria uma aula à qual não poderia mais faltar, na São Paulo de Piratininga. Que bom que acabou cedo, porque, quando olhei o espelho, não vi uma pessoa: vi um farrapo. Mas era isso o que eu era depois daquela viagem: um farrapo de gente com um pouco de aprendizado e uma ou outra anedota pra contar.

 

DANIELY SILVA

22 ago. 2023



[1] Enquanto revisava este texto, tinha acabado de ler Abusado, o Dono do Morro Dona Marta, de Caco Barcellos. Curiosamente, compartilhei do sentimento de Juliano VP, nome usado por Caco para o traficante Marcinho VP, quando esteve na Argentina.

“— Nunca vi um negócio desses, Juliano. Imaginava que traficante pudesse sofrer de dependência de alguma droga. Mas dependência de feijão? — eu disse.” (BARCELLOS, 2006, p. 472)


Barcellos, Caco. Abusado: O Dono do Morro Dona Marta. 16ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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