Maria Clara Fagundes: Uma Felizarda? - Resenha de Pedaços da Fome (1963), Carolina Maria de Jesus



 

            A Felizarda, publicado em 1963 sob o título de Pedaços da Fome, mostra-se uma obra particularmente representativa da produção literária de Carolina Maria de Jesus, começando pelo fato de se tratar de um romance. Isso por que em Casa de Alvenaria (1961, reeditado em 2021), Carolina deixa explícito seu descontentamento em continuar a escrever diários.

            Fiz esta resenha enquanto ainda lia Casa de Alvenaria, seu segundo livro de diários, onde podemos encontrar uma Carolina que se queixa de que pouco lhe sobrava de seu valioso tempo para se dedicar à sua verdadeira vocação: ser romancista, novelista, cronista, dramaturga, compositora e viver como poetisa, como a própria faz questão de se identificar e se reafirmar.

            A despeito das cobranças de Audálio Dantas por diários, o romance foi publicado em 1963, com as economias da própria escritora[1], enquanto residia em sua casa de alvenaria no bairro de Santana, Zona Norte de São Paulo. Ainda assim, não lhe foi possível evitar a mudança de título.

            Ao longo da leitura, é possível notar que A Felizarda carrega muito mais sentido e profundidade que Pedaços da Fome, tendo em vista as inúmeras referências feitas pela autora-narradora ao título original. A escolha editorial remete a uma visão limitada e fetichizada de Carolina: à famélica favelada que escreve diários sobre sua vida miserável, que fora “descoberta” e “resgatada” por um jornalista branco. Não seria essa sua única obra a ter um título publicado que ia contra sua vontade, pois foi o que aconteceu a Um Brasil para os brasileiros, livro de memórias que foi publicado, em francês, como Journal de Bitita (1982), o Diário de Bitita, em referência ao seu apelido de infância. A obra não se tratava de um diário, mas de uma coleção de memórias de caráter autobiográfico no contexto de um Brasil pós-abolição; inclusive, não tendo sido publicada originalmente no Brasil, teve que ser traduzida para a português a partir da tradução para o francês de seus manuscritos originais.

            O romance é mais profundo que meros pedaços da fome, trazendo incontáveis nuances sociais da sociedade da década de 1960: o papel da mulher e do matrimônio, questões de raça e classe e as expectativas criadas tanto a respeito do interior como da capital, culminando com a quebra dessas expectativas. A narrativa, expondo a realidade através da ficção, traz muito daquela Carolina que conhecemos através dos diários e das poesias. Por essa razão me refiro a uma “autora-narradora”. É preciso superar a leitura de Carolina tida nos anos de 1960 e 1980, colocada num lugar exótico a limitou à escritora de diários que relatava a vida na favela. Tendo todo o cuidado para não demonizarmos a figura de Audálio, é preciso também superá-lo, dando ouvidos a Carolina como o próprio o fizera ao levar suas próprias palavras escritas à imprensa, ao invés de simplesmente falar sobre ela em seu lugar.

            Carolina teve acesso limitado à educação. Ao mesmo tempo que isso pode ser visto como um obstáculo ao desenvolvimento de sua literatura, é também o que a torna livre dos vícios da academia e lhe permitiu, de forma original, construir sua história sua arte. Afinal, para escrever é preciso dominar a linguagem escrita — o que ela fazia, ao seu modo, com maestria, além do repertório cultural e as vivências.

            A história de Maria Clara Fagundes, protagonista da trama, é quase a antítese da história da autora. Carolina, pobre, viu sua vida mudar com a publicação de Quarto de Despejo; Maria Clara, rica, viu sua vida mudar com um casamento infausto. Como cantou Zeca Pagodinho, confesso que sou de origem pobre (mas meu coração é nobre) e em vários momentos me vi contemplada pelas precisas descrições que Carolina faz do Brasil de verdade — que nem tanto mudou em quase 60 anos, sendo um romance vergonhosamente atual.

Pedaços da Fome conta trajetória de Maria Clara, moça abastada do interior paulista, filha única de um poderoso coronel fazendeiro de uma cidade genérica. Maria Clara Fagundes tinha tudo o que desejava materialmente, alternando entre a casa da fazenda e o palacete na pequena cidade.

            Por mais estima que tivesse aos pais, o Coronel Pedro Fagundes e Dona Virgínia, seu grande sonho obsessivo era conseguir um namorado e tornar-se uma felizarda. O grande problema é que os rapazes locais a evitavam, nunca a cortejando nem dela se aproximando nos bailes, por temor ao Coronel; muito se contava sobre sua índole, a respeito de ser impiedoso e ter jagunço. Essa impressão vai mudando ao longo da narrativa, tornando-se quase que ambígua a partir do ponto de vista da narradora, mas sempre sendo reforçada a super-proteção do Coronel para com sua filha.

            A grande surpresa vem quando Maria Clara conhece Paulo Lemes, que se apresenta como um dentista de São Paulo. Não conhecendo os relatos sobre o pai da moça e tampouco a dinâmica da cidade, é o primeiro rapaz a demonstrar interesse romântico.

[ALERTA DE SPOILER]

            Ao desenrolar da trama, Maria Clara acaba fugindo com o suposto dentista paulistano e, não na Capital, mas em Guarulhos, descobre um mundo novo: o mundo real. Acreditando que seria uma felizarda, ela se depara com os cortiços de Guarulhos e enfrenta, cada vez mais, as agruras que jamais imaginadas por sua cabeça burguesa.

[FIM DO SPOILER]

            Não faltam na literatura e no cinema histórias de moças pobres que, pela fortuna do destino, viram-se ricas da noite para o dia e não souberam lidar com todas as barreiras invisíveis e os acordos não verbais da alta sociedade. Com Maria Clara, Carolina nos traz a originalidade de uma Cinderela às avessas; a menina que, acostumada a dar ordens e a ser bajulada por todos, ao ponto de os colonos de sua cidade natal, ao vê-la entrar entrada numa praça, levantarem para deixar os bancos livres, encontra um mundo no qual será tratada como igual e onde suas habilidades como pianista são ofuscadas pela sua inabilidade com a costura e os afazeres domésticos. Daí se vê o papel da mulher diante das contradições de classe: enquanto a mulher pobre, preta e periférica enfrenta a dupla (ou tripla) jornada, a burguesa não tem com o que se preocupar, já que terá outras mulheres que farão tudo por elas.

            É esse um dos maiores choques de Maria Clara. Ao penhorar suas joias e comprar uma máquina de costura, resolve costurar para fora para enfrentar a fome; o que ela escuta é: “A senhora aprendeu a costurar no inferno? A senhora precisa costurar com mais capricho". Quando resolve fazer-se lavadeira, mistura as roupas e termina por manchar toda a roupa da cliente; tamanha é a confusão, que Maria Clara é levada pela rádio-patrulha e termina o dia presa.

            A narrativa segue em torno da labuta da nova pobre, atingindo o clímax com a saga do Coronel por São Paulo em busca de sua filha. Evitando as revelações sobre o enredo, trago uma fala do Coronel após sua sofrida Odisseia em meio às nossas desigualdades: “Se Jesus voltar ao mundo, [...] há de ficar horrorizado com estas desorganizações. Deve ser por isso que êle não vem.” (JESUS, 1963, p. 209).

            Maria Clara redescobre o mundo através do sofrimento e conhece o mundo real da única forma possível: vivendo-o. Carolina nos oferece uma leitura envolvente que nos prende do início ao fim. Vale a pena investir algumas horas nesse livro tão singular, com sua linguagem que não é simplesmente simples, mas cirúrgica e realista. O tempo todo torcemos por um final feliz para Maria Clara, mesmo sabendo que na vida real não existem finais felizes — e tampouco o final de um relato é realmente o fim de tudo.

            Só uma pessoa que já viu a face da fome teria uma visão do paraíso tão original como a manifestada pela autora através da fala do Coronel Fagundes:

 

Obrigado, Dona Virgínia. Eu ouvi dizer que lá no céu tem um queijo tem um queijo dêste tamanho. E que o casal que viver aqui na terra sem arrufos, sem desfazer-se do lar, quando morrerem vão partir o queijo e dividir com seus descendentes. (JESUS, 1963, p. 17)

           

            Não se trata, todavia, de reduzir a escrita de Carolina à fome, mas é inevitável que sua vivência não traga descrições viscerais, como poucos foram capazes de expressar. Como exemplo disso, Vera Eunice de Jesus, filha da autora, relatava o encontro desta com Clarice Lispector. O diálogo decorreu quando Carolina, admirada, disse-lhe: “Como você escreve elegante!”, ouvindo como resposta “Como você escreve verdadeiro!” (MACIEL, 2021). É preciso estudá-la e valorizá-la como uma autêntica literata. Clarice não tem sua cadeira na ABL por não ser brasileira nata? Carolina por não ser acadêmica ou por ser uma mulher preta e da favela?

                  Além de uma descrição precisa da vida real dos pobres do Brasil, Carolina traz uma genial caricatura da elite brasileira, que, se hoje não está habituada a ser retratada com escárnio, que dirá na década de 1960. Jorge Amado comenta o romance nesse sentido:

 

Agora temos a visão do mundo da pequena burguesia, dos intelectuais e da grande burguesia através dos olhos observadores e realistas de quem veio de uma favela. (JESUS, 1963, p. 7)

           

            Não tive contatos profundos com os abastados, portanto, minha visão da burguesia nem é lá tão diferente daquela tida por Carolina — isso ainda considerando que ela teve um contato expressivo com as elites a partir da publicação de seu primeiro livro. Um contato, muitas vezes, decepcionante, decepção a qual está implícita na obra. Enquanto escrevia o diário Casa de Alvenaria, Carolina estava no processo de produção de A Felizarda. Sua decepção fica evidente em momentos como o da fala de Paulo Lemes:

 

No jardim, com aquêles infelizes que estavam sentados no teu banco. Você tem a mesma mania de pretensão do teu pai. Está claro. Filha de cangaceiro aprende a matar. Ficam impiedosos. Você deve estar habituada a dirigir ofensas aos outros. Vocês ricos vivem bajulando-se. Um rico não gosta de inimizar-se com outro rico, mas nós os pobres vocês não consideram. Vocês é quem predominam e selecionam as classes. Só podem frequentar os melhores teatros e os pobres vocês classificam de gente humilde... e existe cada quadrúpede rico! (JESUS, 1963, p. 17)

           

            E, conforme a vida passa, o que eu vejo é que, realmente, existe cada quadrúpede rico. É nisso que Carolina é tão sincera e onde está boa parte da genialidade de sua obra: a burguesia retratada não como o centro do mundo, mas como gente como a gente.

 

        Daniely Silva, 6 de outubro de 2023. 

 

MACIEL, Nahima. ‘Casa de Alvenaria’, de Carolina Maria de Jesus, recupera diário da escritora. Correio Braziliense, Brasília, 17/08/2021. Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/08/4944037-casa-de-alvenaria-de-carolina-de-jesus-recupera-diario-da-escritora.html >. Acesso: 3 out. 2023.

 

PEREIRA, D. Q. . Diário de Bitita: a autobiografia ensaística de Carolina Maria de Jesus. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, [S. l.], n. 58, p. 1–10, 2019. DOI: 10.1590/2316-40185811. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/28074. Acesso em: 30 maio. 2022.



[1] Apesar de tudo, Carolina persiste na tentativa de ser publicada e, por sua própria conta, a autora ainda editou mais dois livros, o romance Pedaços da Fome (1963) e a coleção de pensamentos intitulada Provérbios (s/d), mas nenhum dos dois obteve qualquer aceitação junto ao público. A autora sai definitivamente de cena no fim de 1963, quando consegue (com o dinheiro proveniente das reedições do Quarto de Despejo, no Brasil e no exterior) comprar um pequeno pedaço de terra em Parelheiros, ao sul de São Paulo, onde começa a construir uma casa e onde tenta reordenar sua vida, não sem que isso representasse uma grande ruptura, uma perda para a mulher que desejava ser lida e reconhecida como escritora, mas que nem mesmo tivera a chance de publicar seus escritos que julgava mais significativos, seus poemas, romances e contos. (PEREIRA, 2019)


 

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