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Mostrando postagens de 2021

Letra de imprensa x Letra cursiva

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Minha primeira relação com algo próximo à letra cursiva remete à tenra infância. Não sei se a maioria passou por isso, mas hoje vejo como engraçado o costume de escrever "em cobrinhas" pensando que fossem palavras reais. Também nessa altura, chamava a letra de imprensa "letra de computador", referindo-me principalmente às fontes serifadas que à letra de mão comumente feita no papel. No Ensino Fundamental, tivemos que aprender a escrever em cursiva. Se volto ao processo de alfabetização,  por mais que tenha se iniciado na 1ª série, na minha memória o real domínio sobre o sistema de escrita se deu na minha 2ª série (equivalente ao atual 3º ano). Graças aos intermináveis e repetitivos beabás, percebo que ainda carrego, até hoje, boa parte da caligrafia da professora Sizalta. E assim, com a letra cursiva, permaneci por anos até o final do Ensino Médio, quando decidi utilizar a letra de imprensa a fim de uma melhor estética e legibilidade. Nesse meio tempo, meu professor

Relógios: medir o tempo em tempos do tempo que não para

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    Diz-se por aí que o que diferencia o ser humano dos demais animais é a contagem do tempo. Mas será isso algo inerente à nossa espécie ou uma conseqüência dos modelos de sociedade? Grande parte dos animais dispõe de algum tipo de percepção do tempo, o que inclui o ser humano ao longo de sua história evolutiva. No entanto, desde que deixamos as cavernas paleolíticas para passar a formar culturas  agrícolas e urbanas, o tempo foi se tornando cada vez mais central. Na paisagem, e, pensando paisagem como tudo aquilo que é percebido pelos nossos sentidos, podemos notar o tempo demarcado pelo som dos sinos das igrejas e mesquitas, pela vista de um praça ou torre do relógio comuns em tantas vilas e cidades, como também pelo cheiro dos alimentos comercializadas localmente, demarcando não só a época de uma safra, mas também o momento do dia: o cheiro de café e pão fresco pela manhã ou o de feijão temperado ao coentro ao meio-dia. Hoje, na era em que os dados nos bombardeiam o tempo todo, rel

Halloween no Brasil: engolir ou cuspir?

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  Neste 2021 ainda pandêmico, tenho me deparado com vários relatos no Twitter sobre uma maior adesão ao Halloween no Brasil. Minha impressão é que isso se deva, em grande parte, à euforia represada pelos fatídicos meses da pandemia que estamos vivendo, que agora tem vazão com uma maior cobertura vacinal e redução de casos e mortes. Assim, muita gente deve aproveitar qualquer oportunidade comemorativa para se reunir, embora eu ainda não me sinta segura para estar numa aglomeração. Apesar da questão pandêmica, a partir da minha experiência anedótica também percebo um movimento de crescimento nas comemorações ano a ano. Nalguns momentos, foi substancialmente alavancada pelas escolas de idiomas, como também em colégios particulares das grandes cidades e condomínios de classe média. Neste  ano, no entanto, tenho percebido uma grande movimentação em diversas instituições culturais e empresas, assim como as festas propriamente ditas. Novamente, reitero que isso se trata de uma percepção pesso

Visitas aladas e flores polinizadas

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  Junto ao Inverno chegam ao meu jardim as florações de mirra e estomalina. Pela primeira, quem tem preferência é a nossa doce abelha jataí; a segunda costuma ficar com as famosas abelhas listradas do Velho Mundo. Nativas ou não, abelhas têm seu papel no ecossistema e na agricultura. Ninguém quer viver o episódio Hated in the Nation da série britânica Black Mirror, não é mesmo?   O que me preocupou na floração deste Inverno de 2021 foi que, ao contrário dos anos anteriores, quase não vi abelhas jataí por aqui. É claro que não posso levantar especulações sobre a razão de tal ausência sem maiores investigações, mas, querendo ou não, acabo ficando com aquela pulga atrás da orelha (ou seria uma abelha atrás da orelha?). O que me consola é perceber outras espécies nativas marcando presença no jardim, algumas que mal costumava ver em outros Invernos. Além destas, a presença de pássaros foi fantástica neste ano desde o Verão, como relatado nesta publicação e também nesta . Há correlações en

Brilhantes espelhos negros que apagam nossa luz

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  Já vimos fotos antigas mostrando vagões do metrô com quase todos os passageiros concentrados em seus jornais. Isso é tão diferente de ver uma cena dos dias atuais em que quase todos os passageiros vidrados nas telas de vidro de seus telefones celulares?    Os meios e os veículos mudam, possibilitando novas linguagens. Olhando para a tela de um celular, o usuário talvez não esteja num portal de notícias, mas acessar redes sociais também é, de certo modo, uma forma de atualização e leitura da realidade. Além disso, o universo de possibilidades tende ao infinito: ele pode estar se comunicando por mensageiros rápidos, consumindo literatura, material didático-acadêmico, administrando finanças, jogando etc. A rede social mostra o cotidiano, mas também veicula arte, política e atualidades. De certo modo, é mais orgânica que um antigo jornal impresso. É claro que nosso consumo de conteúdo não é, a rigor, livre: somos reféns de um algoritmo. Se, na obra de George Orwell, 1984, the Big Brother

O vírus causador da tragédia tem um nome (e não é Sars-Cov-2)

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Às vezes pensamos a Covid-19 como uma monstruosidade que aproxima pouco a pouco seus tentáculos, uma doença silenciosa que não sabemos quando e se nos atingirá. Não sabemos se seremos uma mera transmissora sem sintomas ou se perderemos o ar no leito de um hospital. A realidade se maquia através dos números e das estatísticas, pois é difícil abstrair a dor enquanto não a vimos de perto. Quando passamos a ver aquilo acontecendo perto de nós é que tudo começa a fazer mais sentido. Quando os primeiros amigos são atingidos, perdendo eles os pais enquanto estão também num hospital sem que possam se ver, vemos o quanto é tangível a tragédia que nos assola. Quando os segundos familiares são atingidos, também hospitalizados junto à própria mãe sem poder vê-la e, posteriormente, perdendo-a para sempre, vemos que os tentáculos da pandemia estão mais próximos, sedentos pela dor e pelo luto. Quando os terceiros familiares, desta vez mais próximos, são atingidos, percebemos o quão próxima de nós es

Emprestar dinheiro é uma furada

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  Havia começado a escrever o rascunho desta postagem meses atrás, mas o gatilho que me fez voltar a ele foi um evento ocorrido no começo desta semana, na segunda-feira, 10 de maio. É tão curioso quando alguém mal fala com você, mas sempre que lembra de si é para pedir algum favor. Até aí tudo bem, quando recebi uma mensagem de boa noite pensei se tratar de mais um favor e não seria problema algum ajudar. Mas o pedido era de um valor alto em dinheiro a ser emprestado. Reconheço que meu maior pecado é o da avareza, mas o problema não é só este: dou valor àquilo que não veio fácil e não gosto que vá fácil. Se posso ajudar alguém e aquilo não far-me-á falta, dar-lho-ei com todo o gosto. Mas e se me for fazer falta? Não há garantia de que a pessoa vá me pagar quando prometido e, muitas vezes, cobrar é indelicado, fazendo com que quem fez o empréstimo acabe ficando mal visto — por mais que esteja realmente precisando daquele dinheiro de volta. Outra questão é: quando viermos

Dia Mundial da Língua Portuguesa

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Trecho do romance "Quincas Borba" (1891), de Machado de Assis.   Criada em 2009 como Dia da Língua Portuguesa e da Cultura pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e instituída pela Unesco em 2019 como dia mundial, o 5 de maio pode trazer vários sentidos e significações aos países e regiões lusófonas em todos os cinco cantos do globo.   A língua de Camões é também a língua da Severina, da Teresa, do Seu Chico, da dona Maria, da dona Irene e dos seus quase 300 milhões de falantes nos cinco continentes. A língua que é da mesóclise e do pretérito mais que perfeito é também da próclise em começo de frase, que dispensa concordância e da diversidade linguística. Uma língua que expressa a saudade, mas também o xodó e o cafuné.   A última flor de Lácio espalha o seu pólen ao redor do mundo, fecundando a diversidade enquanto se nutre das mais diversas fontes lingüísticas e culturais dos mais variados povos. Não à toa a língua faz parte de um seleto grupo de idiomas os q

Quando vizinhos tão próximos estão também tão distantes

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UTC (-3) 2021-04-10 23:27:27 6" f/1.8 50mm ISO800   Que angústia olhar para o céu e ao ver Alpha Centauri não saber o que lá nos espera. Talvez seja uma sensação parecida com a tida com relação a Marte e Vênus décadas atrás, ambos os planetas mais próximos de nós do mesmo modo que  Alpha Centauri é o sistema estelar mais próximo. Fantasiávamos sobre as formas de vida que lá nos esperavam, mas nos deparamos com surpresas nada animadoras: no planeta da deusa da beleza, encontramos um inferno da vida real, com um efeito estufa inimaginável e chuva de enxofre; no planeta do deus da guerra, um deserto gelado de atmosfera tão rarefeita que ferveria o sangue humano.   O Cruzeiro do Sul, que junto às suas guardiãs, Alfa e Beta Centauri , serviu de bússola nos céus austrais por séculos, hoje pode nos servir de bússola para olhar em direção às nossas possibilidades para o futuro. Quando olhamos para Rigil Kentaurus , a estrela alfa da constelação do Centauro, na verdade estamos vendo um sis

Inesperadas visitas emplumadas

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Ter acompanhado o desenvolvimento de uma ninhada de bicos-de-lacre foi uma das experiências mais emocionantes que já tive, com relatei nesta publicação . Durante semanas só podia ouvir os piados dos filhotes e, quando finalmente deixaram o ninho, pude vê-los descobrir o mundo com seus olhares deslumbrados. No entanto, sabemos que quando o passarinho cresce, ele quer voar. Tanto nos debruçamos enquanto humanidade a fim de discutir a liberdade, mas talvez seu verdadeiro sentido esteja no voo de uma ave. Como nós, os animais não humanos são dotados de sentimentos, emoções e vontades, não constituindo, portanto, meros avatares sem consciência. No seu dia a dia, os pássaros vão fazer o que têm que fazer e o que querem fazer. Foi essa compreensão que me faltou nos últimos dias. Os filhotes de bico-de-lacre há tempos não apareciam no meu jardim; logo, eu ficara preocupada com sua integridade, pensando até, a cada grito escutado de uma ave de rapina nas redondezas, na possibilidade de que houv

Por que ouço rádio em 2021?

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    Já faz alguns anos que muita gente acha estranho quando falo sobre ouvir rádio nos dias de hoje. Apesar do estranhamento, para mim é só um hábito sobre o qual eu não costumo me questionar o porquê o tenho, assim como não nos perguntamos a razão pela qual usamos smartphones ou acessamos o Facebook, eles simplesmente têm suas utilidades para cada um de nós. Se for pensar numa razão, ela pode ser a praticidade ou simplesmente a nostalgia. No meu caso, voto pela primeira opção: às vezes não quero me esforçar para escolher uma música ou estou enjoada daquilo que costumo ouvir e, assim, deixo que uma estação de rádio faça isso por mim. OK, é reconhecível que os algoritmos dos aplicativos de streaming façam isso melhor que qualquer estação tradicional ou ainda melhor que nós mesmos, mas é aí que entra a questão do hábito, da experiência e, eventualmente, da nostalgia.   Ao longo da vida, uma das principais ferramentas que usei para escutar rádio foi um rádio-relógio de madeira pre

Uma foto que dá errado, mas um momento que fica gravado

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Uma fotógrafa é também uma poetisa, mas sua folha de papel é a paisagem, enquanto sua tinta é a própria luz. A paisagem é tudo o que a vista alcança, mas não só: contemplá-la envolve todo o sensorial, passando por ouvir o quebrar das ondas, sentir a brisa soprar sobre a face, aspirar a geosmina que emana do solo num dia chuvoso. A fotografia tem suas limitações: ela registra uma imagem bidimensional, privando aquele que a vê de todo o conjunto. Mas ela é, acima de tudo, o registro de um momento; momentos nunca voltam, mas seu registro pode permitir revivê-lo enquanto durem os bytes ou os papeis — e enquanto houver alguém que dele desfrute. A foto que abre esta publicação, apesar de simples, acabou me ensinando algo. Trata-se de um registro feito num aniversário meu. Como tanto amo a praia, tenho o costume de visitar alguma cidade litorânea sempre que faço anos. Talvez o litoral seja no mundo meu lugar favorito, em que todo o conjunto de um vento no litoral e o som do quebrar das