Dia Mundial da Língua Portuguesa

Trecho do romance "Quincas Borba" (1891), de Machado de Assis.
 
Criada em 2009 como Dia da Língua Portuguesa e da Cultura pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e instituída pela Unesco em 2019 como dia mundial, o 5 de maio pode trazer vários sentidos e significações aos países e regiões lusófonas em todos os cinco cantos do globo.
 
A língua de Camões é também a língua da Severina, da Teresa, do Seu Chico, da dona Maria, da dona Irene e dos seus quase 300 milhões de falantes nos cinco continentes. A língua que é da mesóclise e do pretérito mais que perfeito é também da próclise em começo de frase, que dispensa concordância e da diversidade linguística. Uma língua que expressa a saudade, mas também o xodó e o cafuné.
 
A última flor de Lácio espalha o seu pólen ao redor do mundo, fecundando a diversidade enquanto se nutre das mais diversas fontes lingüísticas e culturais dos mais variados povos. Não à toa a língua faz parte de um seleto grupo de idiomas os quais têm status oficial nos cinco cantos da Terra (África, Américas, Ásia, Europa e Oceania).
 
No entanto, é importante evitar a romantização desse processo por si só. Se hoje o português é uma língua tão diversa e difundida, é devido a um brutal processo colonial empreendido entre os séculos XV e XX, com fortes reflexos ainda nos dias atuais.

Sobre a impressão de que o colonialismo português foi brando, o jornal Público fez um completíssimo conjunto de matérias denominado Racismo em Português, em que detalha como se deu o brutal e racista processo colonial nos atuais PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). Há matérias sobre Angola [1], Cabo Verde [2], Guiné-Bissau [3], Moçambique [4] e São Tomé e Príncipe [5]. O conteúdo completo das matérias, nelas também incluídos os vídeos anteriormente endereçados, pode ser acessado clicando aqui.

Contudo, se durante as invasões europeias a língua foi uma ferramenta de dominação e apagamento das culturas e línguas tradicionais, durante o processo de luta anti-colonial essa função foi subvertida contra a própria colonização, servindo como língua franca entre os diversos povos situados entre as fronteiras anteriormente impostas pelos invasores europeus. Isso parece contraditório, mas é um processo que evita a imposição de uma das línguas nacionais sobre as demais, como acontece em inúmeros exemplos ao redor do mundo. Mais do que isso, uma língua em comum facilita a comunicação, o que é um elemento essencial nas lutas e articulações pela independência.

Falar na difusão de línguas europeias ao redor do mundo é sempre muito delicado, pois todas elas estiveram envolvidas em processos coloniais e imperialistas. O francês, o inglês, o espanhol e o português são os maiores exemplos disso. No entanto, a construção de uma descolonização passa por releituras desses processos, de modo a fazer uma nova apropriação dessas línguas nos contextos locais e atuais. 

Tanto o Brasil como os PALOP se viram no dilema de (re)construir suas identidades no período pós-colonial. A língua, nesse processo, é essencial, manifestando-se não só na literatura e na música, mas também numa constante evolução da tradição oral.

 
Em muitos casos, numa situação de diglossia, o português convive com línguas crioulas de base portuguesa. É o caso Cabo Verde, em que o português é língua oficial, mas o kriolo cabo-verdiano é a real língua falada nas ruas e na intimidade, embora ainda careça de caráter oficial e se discuta a estandardização [6].
 
É importante lembrar que línguas crioulas não são línguas menores ou faladas erroneamente. São línguas próprias e de desenvolvimento original, tendo em comum com o português somente a base, principalmente lexical. Se extrapolamos o conceito, não seria o português também uma língua crioula baseada no latim imposto pela dominação romana na Península Ibérica?
 
Em Macau, Região Administrativa Especial da República Popular da China. Devolvida por Portugal à China em 20 de dezembro de 1999. Com a tese chinesa de um país, dois sistemas (一国两制) o português permaneceria como língua oficial da administração pública conjuntamente ao chinês, sendo o cantonês a língua chinesa mais largamente utilizada pela população. Além do português, Macau viu ao longo dos séculos o desenvolvimento do patuá macaense, crioulo de base portuguesa influenciado por uma série de outras línguas presentes na região, sejam elas originalmente locais ou vindas de outras regiões do globo.
 
 
É raro encontrar nas ruas de Macau alguém que fale tanto o português como o patuá macaense, língua crioula de base portuguesa [7], estando essa minoria concentrada principalmente na população mais idosa. A situação é semelhante à de Hong Kong, onde o inglês também permanece como língua oficial após sua devolução à República Popular da China em 1997. A diferença é que nesta região há um número muito maior de falantes da língua inglesa que há da portuguesa em Macau; as razões para isso são várias, mas, entre elas, a relevância do inglês na atualidade. De todo modo, ainda que o português não seja largamente falado, a língua também faz parte da identidade da cidade, seja nas placas bilíngües em chinês e português ou nos registros civis de cidadãos, por exemplo.
 
Ainda assim, Macau enfrenta dificuldades em ter sua adesão plena à CPLP devido ao fato de, apesar de seu status relativamente autônomo, responder a Pequim [8]. Situação parecida à da Galícia, que busca, devido aos laços históricos e lingüísticos entre o galego e o português, uma aproximação à lusofonia e uma adesão à CPLP, mas acabava encarando uma situação extremamente delicada por responder diretamente a Madrid [9] [10] [11] [12].

A linguagem é uma ferramenta que não tem um fim si próprio, tendo como sua principal função a comunicação. Não sabemos o quão complexa pode ser a linguagem dos outros animais, mas, de qualquer modo, podemos dizer que a nossa é única ao seu modo. No caso humano, a língua ganha uma dimensão não só cultural, mas também política. A definição do que é uma língua é essencialmente política na maior parte das vezes, influenciando seu reconhecimento como tal e no seu caráter oficial.

Por isso é tão distinto falar sobre o português falado no Brasil e no resto da lusofonia, tendo em vista que as políticas aqui existentes são particulares. Isso me faz lembrar que meu professor de Língua Portuguesa do terceiro ano do Ensino Médio sempre dizia que o Brasil e os PALOP não são países irmãos, mas que têm um padrasto em comum. Ele dizia isso não só levando em conta os processos históricos distintos, mas também as máculas deixadas pela escravização e pelas invasões europeias em ambos os lados do Atlântico. Reinos foram destruídos, famílias separadas e milhões ao mar atirados, enquanto deste lado do Atlântico perdurou por mais de três séculos um sistema cruel e opressivo que traz reflexos em nossa sociedade até os dias atuais.

No processo desumanizador da escravização nas Américas, um dos principais apagamentos infligidos às pessoas escravizadas era o lingüístico. Isso influenciava diretamente no tratamento despendido a esses seres humanos: em contraposição aos crioulos, que eram os escravizados nascidos no Brasil, havia os ladinos e os boçais; estes primeiros eram aqueles que, não nascidos no Brasil, já se encontravam aculturados e falavam português, enquanto os últimos eram aqueles que desconheciam a língua portuguesa, a quem eram designadas as piores tarefas [13]. Por essa razão, usar, nos dias de hoje, o termo boçal como um xingamento acaba por ser extremamente racista — ainda que muitos não tenham o conhecimento disso.

Esse apagamento lingüístico se daria em vários aspectos durante a evolução histórica do nosso país, tanto enquanto sob domínio português, como após a independência. Talvez, o Brasil seja o único país entre os mais populosos e mais territorialmente extensos em que uma mesma língua é tão largamente falada pela maioria absoluta da população. Nos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP), é mais que comum que alguém fale uma ou mais línguas nacionais e tenha o português como sua segunda língua. No Brasil há uma enorme variedade lingüística, desde o guarani em alguns estados e o Nheengatu em regiões da Amazônia até línguas europeias em colônias de imigrantes na Região Sul e no Espírito Santo. Contudo, apesar dessa variedade, a maioria absoluta da população tem somente o português brasileiro como língua materna.

Esse processo faz parte de um esforço consciente por parte do Estado de buscar o monoglotismo, ou seja, uma língua única para o país. Se no século XVIII o Marquês de Pombal proibiu a língua geral e impôs a fala do português aos habitantes da colônia, no século XX Getúlio Vargas não faria diferente, durante a campanha de nacionalização do Estado Novo, ao proibir imigrantes de falarem e veicularem em público suas línguas nativas [14].

Ao longo da nossa história, o Brasil tomou esforços contra a diversidade lingüística em prol de tornar-se uma nação monolíngüe. Mesmo dentro do próprio país, há a imposição das variantes de determinadas regiões, o que acarreta numa estigmatização de certas falas que fogem ao padrão "Zona Sul do Rio" ou "Vila Madalena".

Ainda, do mesmo modo com que se diz que o Brasil virou as costas aos demais países da América Latina em suas políticas históricas, há também um certo distanciamento com relação à lusofonia. Em Portugal e Angola, assim como em outros países de língua portuguesa, há um enorme consumo da produção cultural brasileira, sobretudo das conhecidas telenovelas; além desse tipo de conteúdo, é também importante a atuação das igrejas neopentecostais e dos telejornais. Mais recentemente, tem sido também relevante a atuação de canais do You Tube que, inclusive, têm influenciado o falar de crianças que os consomem [15] [16]. Uma das diferenças da produção de conteúdo audiovisual descentralizada em canais do You Tube é que, enquanto as mídias tradicionais têm um falar padronizado, os produtores independentes se permitem falar em sua variante corriqueira, como também a fazer o uso de gírias e palavrões.

No Brasil, no entanto, não é tão difundido o consumo da produção cultural dos demais países lusófonos. Na década passada, foi louvável a atitude da TV Brasil de veicular, em rede nacional, as telenovelas angolanas Windeck [17], entre 2015 e 2016, e Jikulumessu [18], em 2017. Ambas estão disponíveis no portal da TV Brasil, estando endereçadas anteriormente nos hiperlinks 17 e 18. Além de histórias fascinantes e envolventes, o elenco de ambas é também fantástico, valendo super a pena acompanhá-las. Algo que se nota nestas telenovelas é que, sendo nosso contato com as variantes estrangeiras é tão precário, o canal incluía durante as cenas o significado de termos do português angolano falados durante as cenas.
  
Poema "Língua Portuguesa" (Tarde, 1919), de Olavo Bilac.

A tentativa de isolamento é tanta que, por vezes, tem se pensado na existência de uma língua brasileira separada da língua portuguesa [19] [20]. Já houve propostas sérias a respeito disso, mas, quando se tem falado a respeito na Internet, fico com a pulga atrás da orelha para saber se estão falando sério ou se é só uma piada ou um bait. Um dos grandes defensores da ideia foi o saudoso cantor-compositor e pensador Mr. Catra, nome artístico de Wagner Domingues Costa.

Falar numa língua brasileira vai exatamente na contramão de outro movimento, o da Reitegraçom da Galícia, que visa reintegrar as línguas galega e portuguesa após os séculos de separação pelo motivador histórico e político da formação do Estado português. Contudo, apesar de discordar da proposta de língua brasileira, não seria uma novidade na humanidade o fato de línguas inteligíveis entre si serem consideradas idiomas distintos por razões geográficas, históricas e políticas, como é o caso do galego e do português, mas também do servo e do croata e do romeno e do moldavo; o contrário também é real, quando o que é considerado oficialmente uma mesma língua tem uma série de dialetos pouco inteligíveis entre si, realidade motivada por questões de integração entre países ou pela tentativa de unificação nacional.

Contudo, seria realmente benéfica para o Brasil essa separação? Ainda que não nos impedisse na prática de usufruir da cultura dos demais países de língua portuguesa, uma diferença idiomática formal seria, de certo modo, mais uma barreira psicológica como obstáculo a esse acesso.

É claro que não se pode negar as particularidades do português brasileiro, suas diferenças são o que o tornam único. Na verdade, como sabemos, o português brasileiro engloba um conjunto de variantes influenciadas pelas mais diversas fontes lingüísticas, dando originalidade a cada um dos falares do Brasil.
 
Entre tudo o que mais me encanta no português, a beleza das vogais nasais é o que mais me acaricia os ouvidos. A riqueza de fonemas não é das maiores e tampouco das menores entre as línguas humanas, mas isso não torna o português menos ou mais importante que as tantas outras faladas e escritas pela humanidade. Mas é claro que nossa mãe acaba sendo sempre mais especial que as outras no nosso coração, pois não?

Daniely Silva, 5 de maio de 2021.

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