Halloween no Brasil: engolir ou cuspir?

 
Neste 2021 ainda pandêmico, tenho me deparado com vários relatos no Twitter sobre uma maior adesão ao Halloween no Brasil. Minha impressão é que isso se deva, em grande parte, à euforia represada pelos fatídicos meses da pandemia que estamos vivendo, que agora tem vazão com uma maior cobertura vacinal e redução de casos e mortes. Assim, muita gente deve aproveitar qualquer oportunidade comemorativa para se reunir, embora eu ainda não me sinta segura para estar numa aglomeração.

Apesar da questão pandêmica, a partir da minha experiência anedótica também percebo um movimento de crescimento nas comemorações ano a ano. Nalguns momentos, foi substancialmente alavancada pelas escolas de idiomas, como também em colégios particulares das grandes cidades e condomínios de classe média. Neste  ano, no entanto, tenho percebido uma grande movimentação em diversas instituições culturais e empresas, assim como as festas propriamente ditas. Novamente, reitero que isso se trata de uma percepção pessoal, não sendo baseada em dados empíricos. No entanto, reservo-me ao direito de assumi-la como válida para a discussão.

Como tudo no Twitter se torna uma enorme rinha de discussões, com o tema do Halloween no Brasil não poderia ser tão diferente. Nesse momento, a Internet se divide entre aqueles que acham ridícula a importação da festividade e aqueles que se colocam contra estes primeiros.

Já tive meus anos de jovem anti-americanista, nos quais rechaçava completamente a ideia de uma festa imperialista em nossas ruas. Hoje, pondero a questão com mais cautela, apesar de ainda olhar com certa desconfiança. Um dos argumentos contra as críticas ao Halloween no Brasil é que o Natal é também uma festividade importada, enquanto o Halloween não é, na verdade, uma festa americana, sendo de origem celta. Apesar de ambas as afirmações serem válidas, é meio complicado seguir por essa linha argumentativa, afinal, há algo em comum em ambas as comemorações: a influência da cultura pop dos Estados Unidos da América.

O Natal está no Brasil desde o início da colonização e das invasões europeias, havendo, inclusive, a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, que faz referência à data em sua fundação. O Halloween, apesar de se tratar de uma festa de origem celta, sua via de entrada ao nosso país não é através dessa cultura, mas sim pela exportação da cultura de massa americana durante as últimas fases da globalização. Assim, será válido argumentar que comemorá-lo em nosso país não se deve ao processo de americanização simplesmente por conta de a origem da festa ser celta? Inclusive, pode-se pensar em processo semelhante com relação ao Natal, que teve também sua abordagem em vários aspectos influenciada pela cultura pop americana ao longo do século XX.

É claro que processos de transformações culturais raramente se dão isolados do resto do mundo: somos um país colonizado e periférico, numa crônica crise de identidade. Tal crise sempre nos deixa num dilema com relação ao que vem de fora: devemos engolir ou cuspir?

E se, como Oswald de Andrade e os demais modernistas do Movimento Antropofágico, decidirmo-nos por deglutir a cultura enlatada americana e digeri-la, transformando-a numa nova manifestação de brasilidade, como fora feito com relação ao legado europeu pelos modernistas de 1922?

Sempre me peguei imaginando um Papai Noel de bermuda e chinelos, com uma caipirinha na mão enquanto carregasse seu saco de presentes. Por que não jumentos* ao invés de renas? Por que não mandacarus e araucárias ao invés de pinheiros e coníferas do Hemisfério Norte? Areia ao invés da cafona neve cenográfica em pleno Verão austral? O Natal é gritantemente mais alienígena que o Halloween em todos esses aspectos. Mas, num geral, parte disso ainda se aplica a praticamente todas as nossas festas, passando pelo Carnaval, a Páscoa e até as festas juninas. Afinal, de uma forma ou de outra, elas nos acompanharam desde a colonização.

O Halloween pode ser ressignificado? Há interesse mercadológico nisso? Parar ganhar doces temos o nosso São Cosme e Damião nos dias 26 e 27 de setembro, mas já que comida nunca é demais, por que não pedir doces novamente no 31 de outubro? O Imperialismo já entrou em nossa casa, agora a decisão é nossa: vamos engolir ou cuspir? Já que não adianta resistir, por que não cuspir o Halloween com um novo sabor mastigado de brasilidade?
 
*sabe-se que o jumento não é um animal nativo do Brasil, mas sua imagem é bem mais familiar que a de uma rena.

Daniely Silva, 1º de novembro de 2021.

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