Brilhantes espelhos negros que apagam nossa luz

 
Já vimos fotos antigas mostrando vagões do metrô com quase todos os passageiros concentrados em seus jornais. Isso é tão diferente de ver uma cena dos dias atuais em que quase todos os passageiros vidrados nas telas de vidro de seus telefones celulares? 
 
Os meios e os veículos mudam, possibilitando novas linguagens. Olhando para a tela de um celular, o usuário talvez não esteja num portal de notícias, mas acessar redes sociais também é, de certo modo, uma forma de atualização e leitura da realidade. Além disso, o universo de possibilidades tende ao infinito: ele pode estar se comunicando por mensageiros rápidos, consumindo literatura, material didático-acadêmico, administrando finanças, jogando etc.

A rede social mostra o cotidiano, mas também veicula arte, política e atualidades. De certo modo, é mais orgânica que um antigo jornal impresso. É claro que nosso consumo de conteúdo não é, a rigor, livre: somos reféns de um algoritmo. Se, na obra de George Orwell, 1984, the Big Brother is watching you, no século das mídias sociais the Big Data is watching you.
 
A cada dia, os celulares inteligentes tornam-se mais presentes em nossas vidas. A evolução que seria atingida por um produto antes limitado a ligações e torpedos SMS era inimaginável até a segunda metade da primeira década do nosso século. Ainda que o iPhone não tenha sido o primeiro telefone inteligente como conhecemos hoje, o momento em que Steve Jobs apresentou o primeiro aparelho da linha foi histórico. Passando pela ascensão e queda do Windows Phone na segunda década, hoje o mercado está consolidado nos dois principais sistemas operacionais móveis: Android e iOS. Não sabemos o que virá no futuro, mas estes pequenos computadores de bolso já se tornaram parte praticamente indispensável das nossa vidas.

Situações curiosas podem acontecer: enquanto o celular está ao meu lado no modo silencioso e sem vibração, posso não ver uma notificação; contudo, através do bluetooth, num outro cômodo meu smartwatch pode revelar meus segredos a quem lá estiver antes eu tome ciência. O mundo dos wearables nos traz cada vez mais possibilidades, intensificando um processo em que vamos nos tornando ciborgues: eletrônicos fazem parte da nossa vestimenta e do nosso corpo, interagindo diretamente com nossas funções biológicas.

Mesmo antes da popularização das tecnologias vestíveis, nós já éramos há alguns anos, de algum modo, ciborgues. Qual a primeira coisa que grande parte das pessoas faz ao acordar? Consultar as notificações no celular, eu suponho. Eventualmente a atenção dada ao celular acaba passando dos limites da etiqueta e da boa convivência: algo hostil que tem se tornado um comportamento generalizado é, numa conversa, estar com a cara vidrada na tela de vidro. Ninguém pensa, por exemplo, em no meio de uma conversa puxar um livro para ler: seria demasiado hostil, não? Então por que com o celular é uma prática tão comum?
 
Nesse sentido, os smartwatches e as smartbands vêm para nos oferecer discrição de ler as notificações de um modo mais suave. Ainda assim, em vários momentos já chegaram a pensar que eu estava vendo as horas e estava apressada quando levantava o pulso para ler uma notificação. Às vezes é bom se desconectar da rede para se conectar ao momento, vivendo-o com todo o potencial que nossos cinco sentidos nos propiciam.

Ainda que a conectividade digital nos proporcione relações e aproximações, o brilho de uma tela preta é capaz de apagar nossa luz, eventualmente fazendo com que nos esqueçamos daquilo que é mais importante. Até fico me perguntando por que alguém que carrega o costume de estar boa parte do dia vidrado no celular faz viagens no seu tempo livre. Imagino que viajamos para aproveitar as experiências e as paisagens, mas se é para passar boa parte do tempo olhando a mesma tela dos outros dias, qual o sentido em conhecer novos lugares?
 
As reflexões que trago não são nenhum tipo de saudosismo ou tradicionalismo, pois eu amo as tecnologias do nosso século. A questão é o uso que fazemos dela. Décadas atrás, era comum o membro da família que mal dava ouvidos aos demais por ficar vidrado na televisão. Hoje, o celular é um imã que suga nossa atenção (ou desatenção) o tempo todo. O aparelho que nos oferece o poder de acessar o mundo em nossas mãos é o mesmo que tem a capacidade de nos desligar do mundo; atingir o equilíbrio para que a tecnologia nos sirva, ao invés de que nós sirvamos a ela, é uma tarefa extremamente difícil.

Algo que tem me ajudado nalguns momentos é o uso do Focus Mode [1], recurso que chegou ao Android no final do Inverno de 2019. Posso selecionar os aplicativos que não quero receber notificações, os quais estarão bloqueados para o meu próprio acesso enquanto o modo de foco se encontrar ativo. Isso pode ser muito útil para ler um texto, fazer lições de idiomas ou mesmo para pagar uma conta no aplicativo do banco quando não queremos redes sociais nos importunando.
 
É um assunto em aberto que não tem conclusão: muito ainda virá e o modelo que usamos para conectar-nos pode mudar totalmente. Se já foi restrito a um teclado e um monitor sobre uma mesa e hoje tem o foco num retângulo de vidro, futuramente pode estar distribuído em nossos pulsos, olhos, ouvidos e, quem sabe, nosso próprio cérebro. Barreiras culturais podem atrasar o processo, mas as possibilidades são quase ilimitadas. O que nos espera nas próximas décadas? Não posso prever com certeza, mas às vezes, como cantou o poeta, minha vontade é trocar meu celular num Nokia tijolão, que só manda mensagem e faz ligação.


Um agradecimento especial à minha grande amiga Romã Meirelles, que topou ser a modelo da fotografia que abre este texto.

Daniely Silva, 19 de abril de 2021.

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