Relógios: medir o tempo em tempos do tempo que não para

 
 
Diz-se por aí que o que diferencia o ser humano dos demais animais é a contagem do tempo. Mas será isso algo inerente à nossa espécie ou uma conseqüência dos modelos de sociedade?

Grande parte dos animais dispõe de algum tipo de percepção do tempo, o que inclui o ser humano ao longo de sua história evolutiva. No entanto, desde que deixamos as cavernas paleolíticas para passar a formar culturas agrícolas e urbanas, o tempo foi se tornando cada vez mais central.

Na paisagem, e, pensando paisagem como tudo aquilo que é percebido pelos nossos sentidos, podemos notar o tempo demarcado pelo som dos sinos das igrejas e mesquitas, pela vista de um praça ou torre do relógio comuns em tantas vilas e cidades, como também pelo cheiro dos alimentos comercializadas localmente, demarcando não só a época de uma safra, mas também o momento do dia: o cheiro de café e pão fresco pela manhã ou o de feijão temperado ao coentro ao meio-dia.

Hoje, na era em que os dados nos bombardeiam o tempo todo, relógios se tornaram menos relevantes na paisagem. Ainda assim, com a pressão para que estejamos sempre conectados, cada segundo passa a contar sob o controle dos frios algoritmos.


Na cidade de São Paulo, relógios de rua marcados pelas delicadas curvas do arquiteto Ruy Ohtake, instalados a partir de 2013 durante a gestão Haddad [1], pouco a pouco vêm se tornando um ícone da cidade conforme são reforçados pelo cinema e pela fotografia. À época, muito se questionou sobre a renovação desse tipo de mobiliário urbano quando todos têm à mão um celular para consultar as horas. Mas a mesma crítica não poderia ser direcionada aos icônicos relógios digitais no alto de edifícios? Entre eles, um dos mais famosos sendo o do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, em São Paulo, que já foi da Wyllys, da Ford, do Itaú e, hoje em dia, após a Lei Cidade Limpa (14.223/2006) [2], ficou só com o relógio e o termômetro sem referência publicitária. Nesse caso, a marcação do tempo na paisagem carrega consigo as mudanças ocorridas ao longo do tempo.
 
Nos tempos em que eu não levava meu celular ao sair à rua, dependia dos relógios de rua de São Paulo. Quando no meu primeiro estágio me deparei com a necessidade de medir o tempo, precisei de um relógio, sem a possibilidade de visualizar as horas no telefone. Mas, ainda hoje, mesmo portando celular e relógio, adoro a praticidade de olhar pela janela do ônibus e poder consultar as horas e a temperatura: o tempo incrementa a paisagem.
 
Enquanto eu me decidia como conferir as horas, foi também em meados dessa década que ocorreu o início da ascensão dos smartwatches, alavancada pelo Pebble, lançado em 2012, e pelo lançamento do Apple Watch em 2015. Costumava ouvir muita gente dizendo que não usava relógio de pulso por ser inútil, tendo em vista que o celular está sempre à disposição para consultar as horas. Mas a praticidade não tem preço, não é mesmo? O que não me deixa mentir é que tanta gente que achava relógios convencionais inúteis, agora não dispensa o uso de uma smartband ou smartwach para receber suas notificações de forma rápida e ágil, mantendo o celular guardado. Afinal, os usos e funcionalidades chegam com o tempo e o que antes era visto como inútil hoje encontra seus usos.

Isso sem falar nos bônus: a contagem de passos, mesmo que não seja 100% precisa, traz uma atenção diária à nossa saúde que pode trazer enormes benefícios se bem usada. Se vemos o quão sedentários somos, há uma certa pressão para a mudança de hábitos.

Assim, gente que anos atrás debochava desse tipo de device, hoje já não vive sem o seu. Afinal, medir o tempo em tempos do tempo que não para não se trata só de ver as horas: somos o tempo todo atingidos pelo bombardeio de dados da era do dataísmo.
 


O dataísmo, termo mencionado pela primeira vez em 2013 por David Brook no jornal The New York Times, foi popularizado pelo historiador e escritor israelense Yuval Noah Harari através de suas obras Sapiens Homo deus. O "culto" aos dados surge quando, cada vez mais, é aumentada a pressão para que estejamos sempre conectados. Enquanto dependíamos de meios lentos como as cartas, éramos obrigados a conviver com a ansiedade por um retorno.

Aí veio o telegrama, veio o telefone... A princípio, sem um telefone em casa, teríamos que nos deslocar até um público, mas, ainda assim, o tempo de retorno era mais rápido que o de uma correspondência.  Posteriormente, com o advento e popularização da Internet, do correio eletrônico, da telefonia móvel, e dos mensageiros rápidos, pouco a pouco, o trabalho e a vida cotidiana passaram a exigir 24 horas de disposição à comunicação. Isso ocorreu de modo tão gradual que, quando nos demos conta, já não havia escapatória.
 
Nunca esqueço o caso de uma professora que foi parar no hospital, perdendo boa parte do couro cabeludo, por ter se chocado à quina de um caminhão dando ré porque digitava no celular. Foi-se o tempo em que o grande risco era falar ao celular ao volante. Agora, que respiramos conexão enquanto acordados (e até dormindo através do wearables), os riscos se multiplicam na medida em que nossa atenção é roubada quase o tempo todo todo. Histórias como as selfies mortais à beira de um precipício ou acidentes decorrentes de jogos de ralidade aumentada, como o Pokémon Go, mostram que há uma infinidade de tragédias que caem na conta da informação.

Não há mais escapatória viável à prisão de dados em que nos colocamos. Deste modo, um dos caminhos possíveis é aprender a usar os recursos que temos para manter o controle sobre o tempo e, portanto, sobre nossas vidas. A informação bombardeia nosso cotidiano, mas o perigo reside no momento em que esta nos consome, ao invés de que nós a consumamos: é aí que devemos encontrar o equilíbrio para que não rompamos o delicado fio temporal que se estica entre humanos e máquinas.

 

Daniely Silva, 16 de novembro de 2021.

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