Saindo da linha e entrando offline

 

Percebi que, no meu caso, produzir na nuvem resulta, apesar de mais tempo para trabalhar num material, em textos remendados, mais procrastinação e menos coesão.

Por mais que, produzindo offline eu tenha menos tempo e possa escrever em menos lugares, a experiência de sentar para produzir se torta mais coesa: aquela tempo é dedicado ao texto que escrevo — e nada mais.

A nuvem de dados se torna, nesse sentido, uma nuvem tempestuosa para quem já tem dificuldade em se concentrar e tendência a procrastinar: “ahhh, posso continuar o texto num momento tranquilo no trabalho”, “ahhh, posso aproveitar uma mesa de bar para revisá-lo pelo celular”, “ahhh, quando chegar em casa termino”. Essas coisas nunca acontecem. E, quando acontecem, torno-me uma doutora Frankenstein reunindo as partes defuntas para construir um texto monstruoso.

Tudo bem que, ironicamente, este texto é escrito conectado a partir da nuvem. Mas surpresa! Ter tanto escrito fora da linha nas últimas semanas tem me ajudado a me concentrar, assim que pretendo finalizar esta crônica nas próximas duas horas (ao final do texto poderei dizer se isso foi real ou não).

Na verdade isto é mais um experimento e uma reflexão que uma discussão séria. Minhas aventuras pela escrita se dão no teclado de um computador, na máquina de escrever, no diário, nas cadernetas e em folhas avulsas.

No computador escrevo rapidamente, mas, apesar da minha simbiose com o teclado que se iniciou aos 7 anos quando fiz um curso de digitação num centro de inclusão digital, as distrações que a Internet e os meus próprios arquivos me oferecem são um obstáculo. Posso experimentar desligar a rede Wi-Fi do laptop e, assim, verificar se minha concentração vai melhorar.

Falando em escrita por teclado sem conexão à rede mundiais de computadores, para isso tenho minha máquina de escrever. Bem, não só para isso: minha Olivetti Dora foi de minha tia. Apaixonada por compor poesias, juntou seu dinheirinho de operário para ter uma máquina de escrever. Com o tempo, a querida Olivetti acabou esquecida. Sofrida com ferrugem, poeira e humidade, passou à minha posse. Depois de muito tempo usando-o com reparos caseiros feitos pela ignorante em mecanografia que vos fala, resolvi levá-la para a restauração pelo Senhor Ronaldo Oliveira, o mecanógrafos que resiste até hoje na antiga Rua do Carmo (São Paulo-SP).

E eis agora o dilema: vou ficar quase dois meses sem minha máquina de escrever. Por ora, vou escrevendo pelo computador e manuscrevendo (existe esta palavra? Se não existe, criei-a agora!). O grande dilema é que, se me adaptar tão bem a me concentrar e fluir desses modos, quando tiver a máquina de escrever de volta a minhas mãos, vou me perguntar: o que faço com ela agora?

Mas acho que isso não vai acontecer. Penso que cada experiência de escrita é única: no computador os dedos são mais rápidos que o pensamento, permitindo que a máquina pense com você; na caneta, o pensamento flui com a leveza de uma caligrafia leve e solta; no lápis, o pensamento entra em conflito com o registro, como o lápis o faz com o áspero papel.

E tem mais: é um diário, um caderno de registros ou uma mera caderneta? Estou escrevendo na nuvem ou no meu editor de textos offline? Bem, até agora o que tem menos variedades e mais tem objetividade é a máquina de escrever: a escrita pode até ser rápida, mas volta e meia as teclas se enroscam, temos que parar de datilografar para fazer a quebra da linha, trocar a folha, girar a fita… Isso poderia, a princípio, atrapalhar na concentração, mas só torna a experiência mais sinestésica. Talvez isso nem faça muito sentido, eventualmente só a experiência romantizada de escrever numa máquina que me ajude. É difícil de explicar, mas quem sabe um dia encontro as palavras para colocar num texto (e que isso seja feito na própria máquina).

Em todo o caso, este texto não foi manuscrito nem datilografado, tampouco feito num editor de texto opensource: foi feito conectado à rede, diretamente no Medium e numa tacada só. Faz tempo que não tinha a experiência de escrever, assim, o que vem na cabeça. Ultimamente tenho planejado até demais. Não invalidando o planejamento, afinal, não podemos depender da inspiração que pode nunca vir; mas às vezes é gostoso escrever mais com o coração que com a razão.

 

Escrito originalmente em 16 de fevereiro de 2022.

Daniely Silva. 

Comentários

  1. Interessante você falar em sinestesia porque tenho a sensação de que escrevi mais ao trocar por um teclado mecânico. A mudança principal é que o processo "mecânico" de escrita se tornou mais prazeroso, não foi minha cabeça que magicamente se tornou mais apta a produzir textos.

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    1. Faz todo o sentido, porque a gente tem tanto o feedback tátil quanto o sonoro. É uma delícia!

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