O verme rói a carne, a terra mói o osso e a chuva corrói o jazigo

A relação de cada um com os cemitérios é sempre um caixa de surpresas: uns sentem medo, outros os veneram e outros buscam ali a paz. Essa impressão é construída não só social e culturalmente, mas depende também da história de vida e o que cada um passou nos cemitérios.

Durante minha formação, meus pais sempre tiveram um respeito exagerado com relação aos cemitérios. Após chegar em casa, sempre fui orientada a tirar os sapatos e tomar um banho, com as icônicas frases “tô com pé de cemitério” e “tô com roupa de cemitério”. Meu pai, inclusive, sempre preferiu os cemitérios-jardim em lugar dos cemitérios tradicionais, já que estes escancaram através de sua monumentalidade a ideia de morte.

Meu pai não é o único a ter esse tipo de pensamento: essa preferência tem uma origem no processo de higienização da morte e um afastamento dos rituais durante a Modernidade (FERREIRA SILVA, 2012). Não se morre mais em casa, morre-se no hospital; preparar o corpo se tornou um serviço contratado, não um cuidado familiar de despedida; raramente se vela o finado em casa, levando-se o momento da despedida a um espaço terceirizado.

Isso, é claro, acaba reverberando na preferência por cemitérios que cada vez menos refletem na paisagem a ideia da morte.

Além de seu impacto na paisagem urbana (ou rural), no caso das grandes cidades a discussão de sua função no espaço é ainda mais relevante. Cemitérios demandam espaço, restringindo a ocupação das já escassas terras urbanas. Em muitos casos, quando não há o devido cuidado, despontam uma ameaça ambiental que põe em risco o solo e a hidrografia. Portanto, aumentar as áreas por eles ocupadas é definitivamente uma má escolha que fazemos enquanto sociedade.

Cemitérios veiculam um discurso e carregam consigo uma história, assim, é burrice dizer que eles “só ocupam espaço”, pois, seguindo essa lógica, parques seriam também um desperdício, tendo em vista que não são necessariamente ocupados por habitações e atividades econômicas. Contudo, é necessário reconhecer que dispor de mais espaço de nossos tão caros solos urbanos para que os mortos se deitem, onde a tantos vivos lhes falta um teto, não seria o melhor dos caminhos; a adesão à cremação se faz cada vez mais necessária, como é uma tendência em vários países. Falando sobre meu desejo particular, minha vontade é que meu corpo seja cremado e minhas cinzas sopradas sobre algum rio, onde pelas águas e ambientes fluviais repousa em vida meu encanto.

No caso de nações majoritariamente católicas, apesar de um histórico tabu com relação à cremação, é importante frisar que a Igreja Católica Apostólica Romana, através do Concílio Vaticano II, passou a permitir, a partir de 1963, a cremação de seus fieis [1]. Ainda que com restrições ao que fazer com as cinzas, o fato de que a instituição, que é, querendo ou não, ainda relevante no Ocidente, tenha passado a permitir o processo, é um passo importante para uma transição que, cedo ou tarde, terá que ser discutida.

A despeito da problemática socioambiental dos cemitérios, por que alguém pensaria em extingüir os atuais, substituindo-os por edificações? Cemitérios podem ser grandes museus a céu aberto, parques e locais de convivência. Eventualmente arborizados e permeáveis, podem ter seu papel na drenagem das chuvas e no enriquecimento da fauna, permitindo cenas como um ninho com filhotes de passarinhos que, num canto lúgubre, homenageiam o descanso eterno daqueles que ali jazem. É longe do barulho da avenida que podemos encontrar paz, arte e reflexão.

o cemitério é um museu a céu aberto. Conta a nossa história de trás para frente, da morte para a vida, de acordo com as crenças, cultura, poder econômico de uma determinada sociedade. Essa leitura permite diversos aspectos que podem ser explorados: perspectiva de vida, imigração, moda, religião, arquitetura, arte… (GRASSI, Clarissa apud AZEVEDO, 2012, p. 104)

Uma necrópole diz mais sobre os vivos que sobre aqueles que ali estão sepultados. São locais repletos de vida: não é sobre o que se faz no pós-vida, mas o que fazemos ao enfrentar e temer a morte. O que desejamos para os nossos restos mortais remete, no culto à morte, àquilo que projetamos em vida. É nesse sentido que a arte tumular aparece, incorporando não só os movimentos artísticos e as tendências culturais da época, mas também os anseios expressados em vida pelo finado e por sua família.

O Cemitério da Consolação, em São Paulo, inaugurado em 1858 como o primeiro cemitério público da cidade, marca uma grande mudança naquele então: um processo de secularização que removia o poder sobre a morte da igreja e o passava para a autoridade secular. É claro que, com o espaço da morte deixando o espaço da fé, a fé não abdicaria de seu espaço nos cemitérios. Ainda assim, é uma nova relação que se estabelece.

Em torno da necrópole, passam a gravitar a arquitetura, o urbanismo e a arte. A morte deixa de ser monopólio da religião, permitindo que a cidade a incorpore à sua Geografia.

 

A lúgubre paisagem da Necrópole conversa com a paisagem da Metrópole.

 

 

Nesse processo, as desigualdades que já eram latentes anteriormente aos cemitérios públicos não são extintas. Quando os sepultamentos dos abastados se davam nas igrejas, aos escravizados e pobres livres lhes restavam os quintais das igrejas, muitas vezes em valas comuns. Com os cemitérios públicos, se, num primeiro momento, a aparência era de uma nascente igualdade, logo os cemitérios mais centrais seriam elitizados, relegando aos marginalizados os nascentes cemitérios nas novas e longínquas periferias.

Se podemos contemplar obras de artistas renomados como Victor Brecheret num cemitério público, isso denota um uso da arquitetura que delineia desigualdades. Famílias tradicionais e abastadas demarcam no espaço e na paisagem seu poder a partir de rebuscados mausoleus. Na vida e na morte, o ser humano se utiliza de recursos para veicular seu discurso na paisagem, determinando a quem pertence aquele espaço.

Ainda assim, espaços elitizados são muitas vezes subvertidos em usos alternativos pela população. Como visto nesta matéria da Folha de S. Paulo sobre o Cemitério da Vila Formosa, as necrópoles estão inseridas na dinâmica urbana nas mais variadas formas possíveis. Usos religiosos e culturais são os que mais se destacam, seja na forma das subculturas e tribos urbanas, como também nas oferendas religiosas ofertadas no espaço necropolitano.

Túmulos de artistas e celebridades acabam por se tornar pontos de peregrinação, como são mencionados na matéria casos como o dos Mamonas Assassinas, no Cemitério Jardim das Primaveras, em Guarulhos (SP). Há também a icônica pirâmide de vidro de Dercy Gonçalves, no Cemitério de Santa Maria Madalena, no município homônimo do Rio de Janeiro.

 

À direita, jazigo de Maria Judith de Barros no Cemitério da Consolação, Região Central de São Paulo (SP)

 

Além das celebridades, outros finados são consagrados como santos populares, aos quais deixam-se flores, velas e palavras de agradecimento pela graça alcançada. Em São Paulo há o caso da Marquesa de Santos, que, inclusive, foi doadora das terras destinadas ao Cemitério da Consolação, o primeiro público de São Paulo; entretanto, há alguns anos foi proibida a deixada de presentes sobre seu jazigo.

Outro caso particular na cidade de São Paulo é o de Maria Judith de Barros. Envolta numa trágica história que a levou a morte, hoje é consagrada pelos vestibulandos, que levam a seu jazigo no Cemitério da Consolação flores, velas e presentes, como visto na fotografia acima. Na mesma necrópole, há o túmulo de Santo Antoninho, santo popular considerado Servo de Deus pela Igreja Católica, que o pôs em processo de canonização reconhecendo a piedade popular. A história de Antoninho não é tão menos trágica: a ele atribuído o dom de prever acontecimentos futuros, morreu aos 12 anos vítima de tuberculose.

 

Jazigo de Santo Antoninho, no Cemitério da Consolação, Região Central de São Paulo (SP)

 

A arquitetura comunica não só as necessidades, desejos e anseios, mas também o sofrimento e as batalhas vencidas. Dentre os sentimentos existentes na natureza, o luto talvez seja o mais humano de todos; ainda que esteja presente em outros animais, na nossa espécie é através do culto à morte que aprendemos (ou buscamos) o significado da vida. Afinal, a morte, por mais triste e impactante que seja, nos trás emoções fortes e inesquecíveis, que resistem inclusive após a superação.

A lendária personagem do terror nacional, Zé do Caixão, já tinha sua máxima: o que é a morte? É o fim da vida; e o que é a vida? É o princípio da morte. Niilista tal qual fora, isso diz muito a respeito de uma concepção da morte que leva em conta aquilo que ela é: inevitável e fatal.

Já a personagem Brás Cubas, de Machado de Assis, da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, sendo um narrador defunto, deixa-nos uma das dedicatórias mais icônicas da literatura, que ressignifica o processo da morte:

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas.

 

Máscara de proteção contra o coronavírus abandonada sobre o pavimento do Cemitério da Consolação, Região Central de São Paulo (SP)

 

Em momentos de tragédias a relação com os cemitérios sempre se torna mais dolorosa e profunda. Neste 2021, o ano III da pandemia da Covid-19, vemos os colapsos sanitários enfrentados por vários países, estados e províncias ao longo deste período fatídico. Uma das mudanças mais marcantes foi o afastamento compulsório dos rituais da morte: funerais curtos e limitados a poucas pessoas, caixões lacrados e enterros em covas rasas são imagens que, bombardeadas pela imprensa, estarão entre as piores memórias já enfrentadas por aqueles que perderam familiares e amigos durante a pandemia. Sabemos que os rituais de despedidas são dolorosos, mas nos momentos em que a tragédia assola a humanidade é que descobrimos que sem eles tudo pode ser ainda pior.

O lugar onde os mortos não falam nos ensina mais sobre as possibilidades oferecidas pelo nosso curto tempo de vida que sobre a morte. Eventualmente, enquanto a necrópole dialoga com a vida, a metrópole exala cheiro de morte.

 

Arte tumular no Cemitério da Consolação, Região Central de São Paulo (SP)

 

Como referências culturais ambientadas em cemitérios, trago as quatro que mais me marcaram: a animação stop-motion A Noiva Cadáver (2005), o musical brasileiro Sinfonia da Necrópole (2014) e Encarnação do Demônio (2008), a última grande produção do lendário Zé do Caixão, que encerra a trilogia iniciada com À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), e, finalmente, Pet Sematary (1989), roteirizado por Stephen King e baseado no seu romance homônimo de 1983.

 


 
 
AZEVEDO, Publio Carlos de. TERRA SANTA: a confessionalidade religiosa no Cemitério da Consolação em São Paulo. 2012. 118 f. Dissertação (Mestrado em Religião) — Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.
 
FERREIRA SILVA, Luís Cláudio. A ABOLIÇÃO DA MORTE NA MODERNIDADE. Revista Odisseia, n. 6, 9 jul. 2012.
 
Escrito originalmente em 4 de agosto de 2021.  
Daniely Silva.

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