Reflexões de um olhar à paisagem em meio à pandemia

O Edifício Martinelli, com 106 metros (347 ft.) de altura, foi a primeira grande construção de São Paulo, inaugurado em 1934. É de lá que foi feita a imagem a seguir, aos 07 de outubro de 2019. Esperava ter feito uma visita ao Edifício Copan, outro ícone arquitetônico da cidade de São Paulo; fui adiando o passeio por preguiça e, agora, em meio à pandemia do COVID-19, é só mais uma das vontades de planos não realizados que martela a minha mente.


Hoje, São Paulo não é dotada de super arranha-céus como outras cidades globais. Mas nem por isso sua paisagem urbana é menos interessante! O destaque que as dezenas antenas de telecomunicação ganham no horizonte é único no mundo e, à parte do show de luzes em que elas se transformam à noite, sua presença diz muito sobre a cidade de São Paulo.

Escrever sobre a paisagem urbana de São Paulo no dia 21 de abril de 2020 torna tudo muito atípico: na data em que se comemora o Dia da Inconfidência, em homenagem à execução de Tiradentes, Brasília comemora seus sexagésimo aniversário; contudo, comemora sem festa, visto que a atual situação da pandemia do COVID-19 não permite aglomerações.

O que Brasília tem a ver com Tiradentes? Bastante coisa, entre elas a sede do poder da República fazendo seu aniversário na data que homenageia um mártir que foi tornado símbolo da República. O que São Paulo tem a ver com Tiradentes? Algumas coisas, talvez sua participação no ciclo do ouro. 

E, afinal, o que tem São Paulo a ver com Brasília? Numa primeira vista parecem ser cidades totalmente diferentes, com paisagens urbanas absolutamente incompatíveis. Mas é interessante pensar que a mesma doutrina que levou à Proclamação da República e à eleição de Tiradentes como um símbolo, o Positivismo, não pegou tão forte em São Paulo. Logo veremos onde eu quero chegar.

Sabemos que o Positivismo é a religião fundadora da república brasileira, com a forma resumida de seu lema estampada em sua bandeira: Ordem e Progresso; a forma completa, redigida por Auguste Comte, prega o Amor por princípio, a Ordem por base, o Progresso como fim. O Positivismo se capilarizou de tal modo no Brasil do final do século XIX e do início do século XX, que entre as quatro Igrejas Positivistas inauguradas no mundo como templos da Religião da Humanidade, três delas estão em cidades brasileiras. Além da Igreja Positivista em Paris, terra natal do culto positivista, os outros três templos estão no Rio de Janeiro, em Curitiba e em Porto Alegre, cidades que foram chave tanto no processo de capilarização do Positivismo no Brasil como na transição para a República.

Mas e São Paulo, onde fica nessa história? Sabemos que a São Paulo do século XIX não era conhecida por ser a cidade mais cosmopolita do império - pelo contrário, era demasiado provinciana, se destacando talvez pela sua Faculdade de Direito, inaugurada em 1827 junto à de Olinda. Com a expansão do café na segunda metade do século XIX e a industrialização nas décadas vindouras, São Paulo mudaria sua cara, tornando-se gradualmente uma cidade pólo.

E o que São Paulo tem a ver com Brasília? A cidade de São Paulo foi a porta de entrada para o Modernismo no Brasil, tanto com a Semana da Arte Moderna de 1922 e sua importância para as artes visuais, como nos marcos que o Modernismo deixaria na paisagem paulistana nas décadas posteriores. São Paulo foi um laboratório para o que viria a ser a cidade de Brasília, não é por acaso que grande parte de seus ícones é fruto das artes modernas. Não à toa o Edifício Copan, o Parque Ibirapuera e, mais recentes, o Memorial da América Latina e o Sambódromo, importantes cartões-postais da cidade, foram projetados por Oscar Niemeyer, tão conhecido pelos seus edifícios em Brasília.

Podemos ir até mais longe e pensar que os principais marcos na paisagem paulistana são todos funcionais: edifícios em geral, museus, a Ponte Estaiada, torres de telecomunicações etc. São, na sua absoluta maioria, todos monumentos funcionais, com usos práticos.

De qualquer modo, todos os símbolos, sejam eles funcionais ou não, perdem sua razão quando não há quem os use ou os contemple. Nossas obras de arte e engenharia são feitas para nós, a humanidade, e, portanto, sem nós elas perdem seu sentido. É essa a situação em Brasília durante a pandemia: um monumento ao modernismo comemora seus 60 anos, mas comemora sem festas; é essa a situação em São Paulo: um laboratório do modernismo funcional que não tem quem faça uso dele e tampouco quem o contemple; aqueles que ainda estão trabalhando estão ocupados e preocupados demais para qualquer uso não laboral da metrópole.

São tempos de angústia, esperança e reflexão.

O momento é de retomar a contemplação às nossas paisagens de origem, em cada região da cidade: olhar através das próprias janelas.

Daniely Silva, 21 de abril de 2020.

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